Enquanto o Brasil e outros países da América Latina demonstram reduzido constrangimento em mudar de constituição, os Estados Unidos primam pela resistência em reformar a sua, elaborada em 1787. Será que essa fidelidade merece ser classificada como admirável e invejável? Atrevo-me a dizer que não.
O próprio Thomas Jefferson, um dos principais inspiradores da constituição americana, declarou: “Não advogo mudanças frequentes nas leis e nas constituições. Mas leis e constituições devem acompanhar o progresso do pensamento humano”. Nos 213 anos de vigência da carta magna foram aprovadas 27 emendas destinadas
apenas a acrescentar algo, como a abolição da escravatura e o voto feminino, mas não a alterar um traço do perfil político institucional.
Residindo há vários anos em Washington DC, venho observando os danos causados por certos ditames constitucionais arcaicos. Para ilustrar, citarei uns poucos exemplos. O mais notório é a existência do Colégio Eleitoral, ao qual cabe escolher o presidente da república após o resultado do voto popular, escolha que ainda precisa ser ratificada pelo congresso. Essa aberração, inexistente em qualquer outra democracia presidencialista, justificava-se em 1787 quando prevalecia o conceito de elevada autonomia das 13 colônias originais formadoras da nação e, também, predominavam dificuldades de comunicação no vasto território. Com a evolução econômica, social, política e tecnológica do país, hoje composto por 50 estados e alguns territórios, o colégio eleitoral tornou-se relíquia inútil e ameaça à integridade da democracia. Tanto é que já ocorreram episódios nos quais o candidato à Casa Branca mais votado pelo povo não foi o vencedor no colégio eleitoral. Os casos mais recentes ocorreram em 2000, George Bush x Al Gore, e 2016, Hilary Clinton x D. Trump.
Outro exemplo de anacronismo é o fato de as eleições serem administradas pelos governos estaduais, inexistindo uma justiça eleitoral desvinculada de interesses partidários. Até mesmo as fronteiras dos distritos eleitorais são definidas pelos poderes legislativo e executivo dos estados, sendo frequentes distritos de formatos exóticos apropriados para favorecer o partido no poder. Constam também da lista de arcaísmos:
a) negação aos moradores da capital do país do direito de eleger
deputados federais e senadores;
b) aprovação pelo senado de todos os ministros indicados pelo
presidente da república, assim como dos ocupantes de milhares de
cargos públicos, principalmente no judiciário;
c) vitaliciedade dos membros da Suprema Corte e de seu presidente,
sem aposentadoria obrigatória.
Esse panorama sugere que o presidente Joseph Biden dispõe da oportunidade de ocupar posição destacada na história do país se inaugurar um esforço para modernizar a constituição. Assim como Abraham Lincoln aboliu a escravidão e Franklin Roosevelt superou a depressão econômica dos anos 30 implementando o New Deal e, como consequência, passaram a ocupar posição histórica relevante, Biden também precisaria ter a coragem de enfrentar a oposição de grupos poderosos da sociedade americana para eliminar conteúdos constitucionais envelhecidos.
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