Há quatro anos, o executivo Carlo Linkevieius Pereira fez uma transição drástica de carreira: depois de ter trabalhado em consultorias como a PwC e em grandes corporações – Votorantim Cimentos e CPFL –, ele assumiu a direção executiva do Pacto Global da Organização das Nações Unidas (ONU) no Brasil. Chegou ao cargo por meio de um processo convencional de seleção, a partir do anúncio da vaga pela ONU. “Muitas pessoas me incentivaram a fazer a candidatura e fui em frente”, ele conta.
Aos 43 anos, formado em Química pela Universidade de São Paulo (USP), mas interessado por questões sociais desde os tempos de movimento estudantil, Carlo já participava ativamente do Pacto Global como líder de Sustentabilidade Corporativa na CPFL, cargo que ocupou entre 2013 e 2017.
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O Pacto Global é a maior ação de sustentabilidade corporativa do mundo, com mais de 16 mil membros em 160 países. O termo ESG, que se disseminou como síntese de uma visão mais ampla de sustentabilidade (ao valorizar também os pilares Social e Governança, além do Ambiental), foi cunhado dentro do Pacto Global.
Dele nasceu também a Agenda 2030, materializada pelos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs), relacionados a áreas como fome, saúde, educação, distribuição de renda, igualdade de gênero, meio ambiente, aquecimento global, água, saneamento e energia. Esses temas foram destrinchados em 185 indicadores no Brasil (há variações de país para país, relacionadas às peculiaridades locais).
Com 1.100 empresas signatárias, a rede brasileira já se tornou uma das três maiores do mundo. Carlo está ciente, no entanto, de que há um longo caminho a percorrer. “Temos algumas dezenas de empresas aqui no País, umas 150 no máximo, que podem ser consideradas referências em termos de sustentabilidade. Mas o Brasil tem 7 milhões de CNPJs, uma massa imensa de instituições que continuam à margem dessa agenda”, ele descreve.
Para o diretor do Pacto Global no Brasil, um dos principais méritos da Agenda 2030 é justamente reforçar a cobrança das grandes corporações sobre as ações em suas cadeias. “Já não basta cuidar de si própria, mas também das empresas com as quais há algum tipo de relacionamento. Pelo amor ou pela dor, essas grandes empresas vão trabalhar cada vez mais para disseminar os princípios de sustentabilidade”, prevê Carlo.
Os ODSs foram estabelecidos em 2015 como um conjunto de metas para 2030. Isso significa que acabamos de passar pelo primeiro terço desse caminho. Qual o balanço geral, no mundo e no Brasil?
No geral, não estamos num ritmo bom de implementação dos ODSs pelos países. Essas são palavras do secretário-geral da ONU. De acordo com uma referência confiável e atualizada, The Sustainable Development Report, o Brasil está na 53ª posição no índice de cumprimento dos ODSs, entre os 166 países incluídos no ranking. O único dos 17 indicadores em que o Brasil aparece realmente bem é o de energia limpa, fator que tem relação direta com as nossas condições naturais privilegiadas.
Quando falamos das empresas, a situação é um pouco melhor. Mas a gente percebe que precisaríamos estar numa velocidade superior, seja em que tema for. Mesmo porque, por conta da pandemia, estamos recuando em vários temas. A fome, que vinha sendo reduzida nos últimos 20 anos, voltou a aumentar. A mesma coisa com a extrema pobreza. São 35 milhões de pessoas voltando para essa condição na América Latina em decorrência da pandemia.
Em relação à pandemia, apesar da piora imediata dos indicadores, é possível imaginar que a maior consciência das pessoas, das empresas e dos governos poderá trazer bons resultados até 2030? Ou seria uma visão muito otimista?
Eu sou um otimista por natureza. Gosto muito de citar o Larry Fink, CEO da BlackRock, que é um símbolo do capitalismo, mas tem falado muito no propósito das empresas, na necessidade de trazer para a gestão todos os stakeholders. No ano passado, ele classificou tudo o que está acontecendo de “movimento de placa tectônica” – ou seja, uma transformação estrutural gigante. Neste ano ele falou em “aceleração do movimento tectônico”.
Temos visto uma quantidade gigantesca de instituições, incluindo do setor financeiro, contratando metas e assumindo compromissos públicos. Nesta era de hiperconectividade e hipertransparência, isso certamente não é greenwashing (falsa adesão ou adesão superficial aos preceitos de sustentabilidade). Converso o tempo todo com líderes empresariais e CEOs e vejo muita seriedade nisso, mesmo porque há um grande risco reputacional envolvido. Acredito que estamos em meio a uma espiral positiva.
O conceito de ESG (sigla em inglês para Ambiental, Social e Governança) chegou com força ao Brasil, como uma visão mais ampla e holística de sustentabilidade. O que há de modismo e o que realmente é mudança?
O acrônimo ESG surgiu numa publicação do Pacto Global, em 2004. Na realidade, ESG é como o mercado financeiro, com suas necessidades de medir riscos e retornos, chama a sustentabilidade. Não concordo com a visão de que seja a “evolução da sustentabilidade”, porque a sustentabilidade sempre foi baseada nesse mesmo tripé. Só no Brasil a gente vê pessoas que passaram a chamar a sustentabilidade de ESG. Várias empresas brasileiras estão até lançando áreas ESG. Mas eu vejo como positiva essa confusão toda, porque dá um novo gás à discussão. Podem chamar do que quiserem. Não importa a cor do gato, eu quero que cace o rato.
O Pacto Global tem reforçado que já não basta o discurso pró-sustentabilidade: é preciso agir e comprovar com números os avanços. Como isso tem se refletido na prática?
Uma das missões do Pacto Global é mostrar às empresas que elas têm o papel de discutir e combater a desigualdade. Isso é praticar a sustentabilidade corporativa: trazer cada vez mais a população para perto, entender a necessidade e os anseios da sociedade. O secretário-geral da ONU tem deixado muito claro para todos nós que precisamos provocar impacto. Chega de call to action, agora já é hora de mostrar resultados. Vamos continuar ajudando as empresas a se capacitar, vamos estender a mão, mas elas têm que contratar metas ambiciosas. Isso significa seguir parâmetros e metodologias científicas. Muita empresa tem falado em carboneutralidade sem seguir os critérios aceitos internacionalmente. Isso é greenwashing.
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No aspecto da equidade de gênero, para citar outro exemplo, 21 empresas brasileiras já contrataram uma de duas metas que apresentamos: 30% de mulheres em cargo de liderança até 2025 ou 50% até 2030. Quando falamos em cargos de liderança, estamos nos referindo a diretoria, vice-presidência ou presidência. Hoje esse índice médio é de 16% no País. A gente vê empresas que divulgam um alto índice de mulheres em cargos de liderança, mas incluem na conta o nível de coordenação, que já está perto de 50% no Brasil. É preciso, portanto, seguir critérios padronizados e científicos, para não cair num discurso vazio e enganoso. Se bem que eu até gosto quando colocam o sino no pescoço da vaca, como a gente diz no interior: se a empresa anunciou, a gente vai cobrar e ela vai ter que se virar para entregar.
Fonte: “Estadão”, 28/03/2021
Foto: Reprodução