O brasileiro vive no meio do esgoto. Os números mostram que menos da metade das residências do país têm esgoto coletado. O resto é despejado na rua, em rios ou nas lagoas. Do esgoto que é coletado, apenas uma parte é devidamente tratada antes de ser descartada em algum lugar. É um absurdo. Uma tragédia responsável por doenças, pobreza e destruição ambiental.
Há muito tempo se tenta mudar isso. As dificuldades são enormes. A selva regulatória que envolve essas questões parece saída de uma novela de Kafka. Prefeitos brigavam com governadores, e ambos se desentendiam com o governo federal. O judiciário era frequentemente chamado a intervir.
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As empresas estatais de água e esgoto, como muitas estatais, serviam principalmente de fonte de geração de riqueza para grupos políticos, e prestavam um serviço de alcance limitado e qualidade sofrível, ainda que, às vezes, gerando lucros significativos.
Uma série de acontecimentos nos últimos anos criou a oportunidade de mudar esse quadro.
A Governança Metropolitana
Resumindo uma longa e complexa história, o Rio de Janeiro criou a primeira estrutura de Governança Metropolitana, cujo órgão principal é um Conselho Deliberativo presidido pelo governador do estado e formado pelos prefeitos dos 22 municípios da região metropolitana do Rio.
A Governança Metropolitana passou a ser a entidade responsável por concessões de alguns serviços públicos que afetam toda a região metropolitana, entre eles o saneamento básico.
A Governança tem um braço executivo: o Instituto Rio Metrópole, que começou a funcionar no final de 2019.
Participamos da estruturação dessa entidade e tivemos a oportunidade de atuar como membro do Conselho Consultivo da Região Metropolitana (órgão de apoio da Governança, composto por membros da sociedade civil) e como presidente do Comitê Intersetorial de Mobilidade Urbana Metropolitana.
O primeiro projeto aprovado pela Governança Metropolitana é, talvez, um dos maiores do Brasil de hoje: o desmembramento e concessão de parte das operações da Companhia Estadual de Distribuição de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro – a CEDAE.
A CEDAE
A CEDAE presta serviços de captação de água, tratamento, distribuição da água (levar a água até residências e empresas) e de coleta e tratamento de esgoto.
Esses serviços são prestados no município do Rio de Janeiro e em vários outros municípios do estado, com variados graus de qualidade e alcance.
Não é incorreto dizer os serviços não atendem à demanda.
Não existe coleta de esgoto na maioria das áreas carentes. O próprio fornecimento de água está sujeito a problemas; basta lembrar o caso recente da contaminação por geosmina, uma substância ligada o despejo de esgoto não tratado nos rios.
O Modelo
A Governança Metropolitana, com a assessoria técnica do BNDES, criou um modelo que tem o potencial de ampliar dramaticamente o alcance dos serviços de saneamento e melhorar sua qualidade.
Nesse novo modelo, os papeis serão divididos da seguinte forma:
CEDAE – Continua encarregada da captação de água e do seu tratamento.
Empresas privadas (Concessionárias) – Assumem os serviços de distribuição da água até as residências e o serviço de coleta e tratamento do esgoto. As concessionárias comprarão a água tratada da CEDAE. Exceções existirão em alguns municípios, onde as concessionárias também farão a captação e tratamento da água.
O estado do Rio de Janeiro foi dividido em quatro conjuntos de áreas – quatro “lotes” – que serão outorgados às concessionárias através de leilão.
Por que a divisão em lotes? Para evitar monopólio e garantir que as concessionárias recebam, cada uma, um lote que inclui áreas desenvolvidas – com alta geração de faturamento – e áreas onde ainda serão necessários grandes investimentos.
Cada lote inclui uma área do município do Rio e algumas áreas de outros municípios.
O Leilão
Na sexta-feira, dia 30 de abril de 2021, foi realizado, na Bolsa de Valores de São Paulo, o leilão dos quatro lotes de concessões.
Três dos lotes foram vendidos, com a geração de R$ 22,6 bilhões de reais em valores de outorga (outorga é o dinheiro que é pago pela “compra” das concessões).
O pagamento de 65% desse valor será feito pelas concessionárias até a metade de 2021. O saldo restante deve ser pago em duas partes: a primeira ainda em 2022 e a segunda apenas em 2025.
Os contratos a serem assinados impõem às concessionárias uma série de obrigações em termos de investimentos, alcance e qualidade dos serviços. Entre outros compromissos, deverão ser investidos recursos na recuperação ambiental da Baía de Guanabara e das lagoas da Barra da Tijuca.
Esse processo tem sido, até agora, um caso de sucesso.
Os Desafios
Um primeiro e gigantesco passo foi dado, e merece ser comemorado. Mas uma série de desafios permanecem.
O Rio de Janeiro não tem sido, nos últimos anos, um modelo de governabilidade ou de estabilidade política. O sucesso do modelo de outorga de água e esgoto dependerá, em grande parte, da existência de políticos e gestores públicos comprometidos com novos padrões de competência, transparência e governança.
Boa parte do problema de degradação ambiental vem da inexistência de coleta de esgoto nas favelas do estado.
Só no município do Rio existem mais de 1.400 “comunidades”. Na maioria delas inexiste qualquer forma de esgotamento sanitário. Levar uma infraestrutura de saneamento a essas áreas será um desafio grande em termos de logística, governabilidade e – evidentemente – segurança.
A gestão eficiente dos contratos também será um enorme desafio operacional e de governança. O Instituto Rio Metrópole está preparando um Centro de Controle Operacional para cumprir essa missão.
O desafio aqui é fugir do modelo das “agências reguladoras” que, muitas vezes, servem apenas como refúgio para operadores políticos ou como protetoras dos interesses das próprias empresas que deveriam ser fiscalizadas – um fenômeno tão comum que tem até nome próprio: “captura regulatória”.
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Os protagonistas
A verdade é que a chave da solução do saneamento não depende apenas do trabalho do Conselho Deliberativo da Região Metropolitana, do Instituto Rio Metrópole e da CEDAE.
Assim como na questão da segurança pública, o sucesso no enfrentamento do desastre do saneamento depende de um pacto entre as instituições – incluindo as três esferas do governo, parlamentos, Judiciário, órgãos de controle, organizações da sociedade civil e iniciativa privada – que coloque o interesse da população e do meio ambiente acima de interesses políticos.
Porque essa é uma oportunidade que o estado do Rio de Janeiro não pode, de forma alguma, perder.
Foto: Divulgação / Cedae