*Por Matheus Leitão/Veja
Filantropia é compreendida em sentido amplo como ação voluntária pelo bem comum. Autoridades acadêmicas no tema afirmam que as ações filantrópicas cumprem cinco papéis principais: (1) suprir necessidades, especialmente quando outros setores falham em supri-las; (2) promover e defender uma causa, apontando a necessidade de reformas para o bem comum; (3) expressar valores culturais, servindo de instrumento para preservar tradições, culturas e identidades; (4) gerar transformação cívica, promovendo engajamento cívico e construindo a comunidade; e (5) impulsionar a vanguarda social, servindo de catalisador para experimentação, inovação e desenvolvimento no campo social. Este último aspecto é particularmente importante em crises sanitárias.
Por exemplo, foi na virada para o século vinte, em meio à crise sanitária causada pela tuberculose, que surgiu a filantropia em massa nos Estados Unidos. O Census Bureau estimou que em 1908 a tuberculose foi responsável por 11% de todas as mortes nos Estados Unidos e de 25% das mortes de crianças em Nova York. O governo americano era incapaz de resolver o problema sozinho e a ajuda filantrópica secular e religiosa estava aquém do potencial. O comitê do governo Theodore Roosevelt descreveu a filantropia de então como “esforços fracos e espasmódicos de caridade”, incapazes de responder ao flagelo da tuberculose.
A história mudou quando Emily Bissell, uma jovem voluntária da Cruz Vermelha Delaware, conheceu um projeto de caridade dinamarquês baseado em selos postais. Bissell convenceu a Cruz Vermelha estadunidense a vender selos postais de Natal em favor da Associação Nacional para o Estudo e Prevenção da Tuberculose, organização voluntária criada por médicos durante a crise. O projeto foi um sucesso absoluto arrecadando milhões de dólares em todo o país por vários anos. Autores como Olivier Zunz, em Philanthropy in America: a History, e Scott Cutlip, em History of Fundraising, afirmam que essas ações criaram a filantropia em massa e levaram à institucionalização de novas leis de saúde pública, políticas sanitárias e programas de educação.
Além disso, as novas técnicas de arrecadação de fundos tornaram possível uma mudança drástica nos hábitos de doação estadunidenses. A filantropia de massa foi o motor de uma colaboração nacional na batalha de longo prazo contra outras doenças potencialmente fatais. Entre 1904 e 1916, o número de dispensários e clínicas de tuberculose subiu de 18 para 455. Durante os mesmos anos, o número de associações voluntárias locais nas campanhas contra a doença saltou de 18 para 1.324. Assim, a Associação contra a tuberculose (hoje nomeada American Lung Association) propôs uma fórmula inteiramente nova para doador e beneficiário: as doações seriam instrumentos para construção de redes de segurança contra ameaças mais amplas.
Assim, as práticas solidárias contemporâneas superaram as concepções paternalistas e elitistas do século dezenove. O atual contexto pandêmico requer novas iniciativas para o enfrentamento da Covid-19 e o consequente desenvolvimento social. É uma questão de valores e comportamento. Afinal, a história da filantropia em qualquer cultura registra a agenda moral desta cultura ao longo das gerações. Robert L. Payton e Michael P. Moody afirmam que a história da filantropia é a “história social da imaginação moral”, ou seja, o registro de quais foram os padrões éticos sobressalentes de determinada sociedade, não em palavras, mas em ações. (Davi Lago é pesquisador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo)
Fonte: “Veja”, 31/05/2021
Foto: Acervo do Memorial do Colégio Marista Arquidiocesano