Se há um argumento que torna aceitável a ideia de que o setor público deva obrigar quem produz a pagar, com uma parte significativa de sua renda, o custeio da máquina pública, é a promessa ou, pacto social, de que este sistema recebe esses recursos para entregar à população, em contrapartida, serviços públicos de qualidade e dar amparo e dignidade aos mais pobres.
Esse processo, portanto, deveria ser um meio pelo qual se reduz a desigualdade social, gerando oportunidades de ascensão social a todos que desejam se esforçar e trabalhar para prosperar, além da manutenção de um ambiente institucional cuja segurança jurídica atraia investimentos e incentive a produtividade para haja crescimento econômico sustentável.
Deveria, então, ser desnecessário dizer que remunerar um funcionário público muito acima do que paga o mercado para a mesma função, é o mesmo do que desperdiçar recursos públicos e, por sua vez, desamparar pessoas que dependem dos recursos do Estado para sobreviver.
Como fazer este paralelo é algo mais elaborado, já que alguns cargos não permitem que façamos uma equiparação ideal entre suas funções públicas e privadas, vou usar como referência de “supersalário”, aqueles salários acima do teto salarial definido pela Constituição Federal, atualmente em R$ 39,2 mil mensais – indexado pelo salário do ministros do STF.
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De acordo com a análise do Centro de Liderança Pública (CLP), com base nos dados da PNAD Contínua (IBGE), cerca de 25 mil servidores públicos, somadas às três esferas de poder, recebem em média R$8,5 mil acima do teto salarial. Em termos percentuais, 25 mil servidores representam apenas um percentual de 0,23% dos 11 milhões de servidores.
No entanto, a cifra financeira é expressiva, pois estamos falando que, se estes funcionários passassem a receber o limite estabelecido pelo teto, o país economizaria R$2,55 bilhões por ano. Para se ter uma ideia, este montante, de acordo com o levantamento do CLP, representa nada menos que:
– Quatro vezes o orçamento do Ministério do Turismo (R$ 661,2 milhões);
– Uma vez e meia o orçamento do Ministério das Relações Exteriores (R$ 1,7 bilhão);
– Mais de uma vez o orçamento do Ministério da Agricultura (R$ 2,4 bilhões);
– Uma vez o orçamento do Ministério da Justiça e Segurança Pública (R$ 2,6 bilhões).
A realidade do Brasil
Ainda que estejamos focados no que classificamos aqui por supersalários, é importante destacar que, de acordo com o IBGE, a renda per capita média no Brasil em 2020 foi estimada em R$1.380,00.
Além do desemprego recorde de mais de 14,8 milhões de brasileiros no primeiro trimestre de 2021, mais de 1,5 milhões de trabalhadores do setor privado fizeram acordos durante a pandemia, aceitando suspender ou reduzir seus salários em até 70%, para evitar a demissão durante a pandemia.
Chega a ser imoral a existência de supersalários no setor público, assim como o fato de que, em 24 estados da federação, o vale-refeição de juízes, por exemplo, supera salário mínimo, conforme levantou a economista Ana Carla Abrão. Ou com o fato de 8.226 magistrados receberam remuneração igual ou superior a R$100 mil pelo menos uma vez desde 2017.
Vale lembrar ainda, que o gasto com pessoal já é a terceira maior despesa do Estado brasileiro, e chega a 13,7% do PIB, conforme apontou o estudo “Reforma Administrativa: diagnósticos sobre a empregabilidade, o desempenho e a eficiência do Setor Público Brasileiro”, do Instituto Millenium em parceria com a consultoria de Data Science Octahedron Data eXperts (ODX). O estudo indicou, também, ser um problema os salários iniciais no setor público serem muito altos.
Na esfera federal, por exemplo, o salário inicial médio para cargos de nível superior é de R$10.470,79, além disso, um ocupante de cargo público federal que inicie ganhando o salário de R$27.369,67 não é considerado outlier ou fora de padrão. Enquanto que a média mensal inicial de um trabalhador do setor privado, com Ensino Superior Completo, é de R$3.028,00.
Para atrapalhar o processo, o ministério da Economia publicou a Portaria nº 4.975, em 29/4/2021, que permite o acúmulo de cargos públicos com remuneração em separado, abrindo espaço para que servidores civis ou aposentados e militares da reserva, que ocupem cargos eletivos ou comissionados, somem os vencimentos e recebam esse total ainda que acima do teto.
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Como agir #UnidospeloBrasil
Como forma de fiscalizar esses tipos de abuso, o CLP lançou no segundo semestre de 2020 o #UnidospeloBrasil um abaixo-assinado em apoio ao PL 6726/2016, pelo fim dos supersalários no setor público. Foram mais de 270 mil assinaturas, contando com apoio de 30 parlamentares, com apoio de 15 organizações, dentre elas o Instituto Millenium.
E, nos próximos dias, o CLP, com o apoio do Instituto Millenium e das mesmas organizações, vai dar continuidade a iniciativa, lançando a calculadora dos supersalários, uma ferramenta que visa demonstrar a discrepância entre os salários públicos e privados que exercem atividades semelhantes e estima o tempo necessário para que um funcionário consiga chegar a receber um supersalário.
Ferramentas interativas são bons instrumentos de conscientização pública, mas não dispensam o engajamento e diálogo com seu parlamentar. Os supersalários representam um custo de crescimento vegetativo, que, portanto, precisa ser combatido com urgência de modo a anteceder quaisquer discussões sobre reforma tributária que vislumbre aumentar a carga.
Enfim, salários incompatíveis com a produtividade de sua função no setor público representam algo imoral e ineficiente e, mesmo que legais, causam um dano imensurável para a sociedade brasileira como um todo, cabendo a nós, cidadãos, não permitir sua existência.