Existem pelo menos duas interpretações concorrentes em relação aos riscos que regimes democráticos vêm enfrentando no mundo, especialmente a partir da crise de 2008 nos mercados internacionais.
A primeira sugere que a vitória eleitoral de vários políticos populistas que sucederam à crise seria uma evidência de que a democracia liberal estaria enfrentando um processo de “autocratização”, caracterizado pelo declínio progressivo dos atributos liberais do regime, sem necessariamente resultar no total colapso da democracia.
Essa interpretação encontraria apoio em pesquisas de opinião (Freedom House , V-Dem etc.) que têm revelado uma percepção generalizada de que a confiança dos cidadãos nas principais instituições democráticas (como partidos, parlamentos e governos) diminuiu.
A pandemia da covid-19 teria complicado ainda mais a vida dos regimes democráticos, pois teria fortalecido os Executivos, que passaram a governar de forma unilateral, por meio de decretos e regras de emergência, o que teria enfraquecido sobremaneira as organizações de checks-and-balances. Ou seja, a autocratização teria se viralizado junto com a covid-19.
A segunda interpretação, por outro lado, enfatiza aspectos relacionados à resiliência das instituições. Ou seja, a capacidade das organizações de controle e da sociedade de resistir às tentativas de populistas de minar aspectos liberais dos regimes democráticos. Assim como o corpo pode se adaptar a adversidades, traumas, tragédias, ameaças ou fontes significativas de estresse, regimes políticos podem ser resilientes, reagindo aos desafios sem perder seu caráter democrático.
Vanessa Boese e coautores acabam de publicar o artigo How democracies prevail: democratic resiliense in two-stage process, na revista científica Democratization, onde sugerem que a resiliência democrática ocorre em dois estágios: ou reagindo desde o início de forma categórica a qualquer ameaça; ou resistindo à quebra do regime quando a democracia já se encontra na curva escorregadia da autocratização.
Os resultados do estudo mostram que as restrições impostas pelo Legislativo impedem o Executivo de se engajar em uma escalada não democrática de seus poderes, mas é a independência do Judiciário que proporciona resiliência contra o colapso. Segundo os autores, tanto as restrições judiciais ao Executivo como a experiência democrática anterior estão positivamente associadas tanto à reação inicial quanto à resistência ao colapso, mas o Judiciário seria o último baluarte contra a autocracia.
No caso do Brasil, o Judiciário, o Legislativo e a sociedade têm sido capazes de reagir e impor limites à atuação do governo Bolsonaro. Ao invés de a crise pandêmica servir de palco para que Bolsonaro desfilasse seu arsenal iliberal fragilizando a democracia brasileira, eles têm reforçado as saídas democráticas aos conflitos, têm revigorado a mídia tradicional e, acima de tudo, têm forçado o governo a jogar o jogo do presidencialismo de coalizão.
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O STF, por exemplo, impediu o governo de constranger a atuação de governadores e prefeitos no combate à pandemia. O Legislativo, por meio da CPI da Covid, tem exposto as fragilidades do governo, inclusive com fortes suspeitas de corrupção na aquisição de vacinas. Na realidade, a pandemia desvelou o que populistas, como Bolsonaro, têm de pior: a falta de preparo e de competência para oferecer soluções eficientes a crises. A sociedade esperava um desempenho que o governo Bolsonaro foi incapaz de ofertar.
A sua recente “reconversão” à política tradicional ao dizer “sempre fui Centrão” é uma clara evidência de que Bolsonaro não representa ameaça crível à democracia. É preferível ver o governo Bolsonaro domesticado e refém de políticos profissionais de um Centrão “guloso” do que cercado de militares que não entendem como o presidencialismo multipartidário funciona.
Fonte: Estadão, 26 de julho de 2021
Foto: Kirkpatrick/NYT