O Estado que gasta em excesso, de forma ineficiente e que gera distorções e privilégios a determinados grupos, acentuando desigualdades, é um contrassenso em si próprio.
Ora… Qual é a lógica que sustenta o fato de cidadãos produtivos bancarem, com seu trabalho, a captura do orçamento público por castas mais articuladas no parlamento ou por representantes que se valham da retórica em defesa dos mais pobres para tão somente perpetuar-se no poder?
O leitor do Millenium Fiscaliza está habituado a acompanhar e a defender a importância da redução do desperdício de recursos públicos, bem como a busca por maior eficiência em sua alocação. Vale ressaltar que, nestes pontos, o teto de gastos, principal âncora fiscal do país, tem papel basilar.
Contexto de sua criação
O teto de gastos é um mecanismo constitucional criado em 2016, com a finalidade de controlar o crescimento da despesa pública, estabelecendo como limite a inflação do ano anterior medida pelo IPCA.
Ele surge no Brasil após o país amargar o pior biênio econômico da história, entre 2015-2016, com uma queda de cerca de 7% do PIB. Isso, sem uma pandemia ou uma retração na economia mundial para atrapalhar. O problema era interno.
E não precisa de muita investigação para constatar que a ”doença brasileira” era fiscal, ocasionada por uma aliança nefasta entre o excesso de gastos e a rigidez orçamentária, cujas consequências vinham sendo proteladas por meio de aumentos de carga tributária, que em 2015 atingiram um limite.
Conforme apontou a primeira edição do Millenium Analisa, entre 1998 e 2015 a inflação foi de 6,6%. Na mesma época, os gastos com pessoal cresceram 10,1%, com previdência 13,2%, as despesas discricionárias 12,7% e a despesa geral 12,9%.
Quando não foi mais possível sustentar o aumento dos gastos públicos com o aumento de tributos, a dívida pública começou a disparar. Entre 2013 e 2016, houve um crescimento de 20 pontos, passando de 51,5% para 69,8% do PIB.
Não houve, e não há, dificuldades em apontar o desequilíbrio nos gastos públicos. O que nem sempre se observa é que o Brasil já apresentava desde aquela época uma carga tributária, uma dívida e um gasto público muito superiores dos que eram apresentados por países de seu nível de desenvolvimento.
Recuperação econômica, inflação e realismo orçamentário
Ao controlar o crescimento da despesa, fixando-o na inflação do ano anterior, o teto de gastos obrigou o parlamento a fazer escolhas e a estabelecer prioridades. Afinal, recursos são limitados e gastar mais do que se arrecada leva, inevitavelmente, a um aumento de tributos e/ou aumento de endividamento. Os economistas sabem inclusive que o aumento excessivo de carga tributária a um certo ponto inviabiliza atividades econômicas e gera, como consequência, uma queda na arrecadação.
Ambos mal calibrados, têm potencial de destruir mercados, dado que quanto mais o governo se financia por meio de dívidas sem equilíbrio fiscal, há menos segurança de que ele será capaz de rolar estas dívidas. Isso motiva os agentes econômicos a exigir garantias ou juros maiores em troca de financiamento. Se os juros são altos e os tributos também, há um desincentivo à produção e a diversos empreendimentos, o que também impacta na geração de emprego.
Ou seja, além de ajudar o país a superar aquela recessão de 2015-2016, o teto foi corresponsável pela queda dos juros e da inflação.
O teto também melhorou o formato de se planejar o orçamento, pois limitava a superestimativa de receitas, que eram fictícias e se transformavam em contingenciamentos bilionários. Houve maior realismo na formulação orçamentária.
Proteção social e reformas
Do ponto de vista da proteção social, cerca de 70% da despesa pública de educação está fora do teto de gastos. No caso da saúde, por exemplo, a despesa pública crescia abaixo da inflação em 2015. Logo, passar a reajustá-la pela inflação em 2016 representou aumento imediato estimado de R$10 bilhões para valores do período.
Distante de ser uma panaceia, afinal, como os próprios autores do teto já manifestaram que não existe regra fiscal infalível e que se baste, e portanto, o teto de gastos abriu caminhos para reformas no Estado Brasileiro, tais como previdência, administrativa e tributária, além de privatizações que iriam desonerar o setor público.
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Ainda que por diversos motivos não tenham ocorrido as reformas esperadas, é inegável que o teto de gastos teve sua influência para realização da reforma da previdência por exemplo, longe de ser ideal por permitir a manutenção de privilégios em algumas categorias, mas com avanços importantes, como o estabelecimento de idade mínima e da unificação entre RPPS e RGPS. Além disso, os salários do funcionalismo e gastos só não estão ainda maiores por conta da ajuda e da pressão realizada pelo teto para equilibrar o crescimento da despesa pública.
Os críticos do mecanismo de tal controle do crescimento da despesa creditam a ele, de forma desproporcional, uma responsabilidade em relação à queda nos investimentos públicos, tipo de gasto não vinculado e mais sujeito ao corte. Porém, essa queda acentuada já ocorria antes mesmo da criação do teto, de acordo com os dados do IBGE, expostos pelo Millenium Analisa sobre Reforma Administrativa, a queda no investimento público é datada das últimas décadas.
O mesmo estudo e a edição do Millenium Explica sobre investimentos trazem evidências de que o setor público, altamente endividado, não tem condições fiscais de promover aumentos significativos no investimento. Na verdade, a ausência de uma âncora fiscal não seria garantia de aumento de investimentos, mas sim, de um retorno desenfreado à irresponsabilidade fiscal.
Por que o teto está ameaçado?
A ideia por parte do governo federal de parcelar suas dívidas impostas por decisões judiciais, os tais dos precatórios, assim como a ideia de substituir o Programa Bolsa Família pelo Programa Auxílio Brasil, são os principais motivos que levam a equipe econômica a defender mudanças nas regras do indexador do teto de gastos.
O teto é indexado pelo IPCA, até julho. O ministro da Economia defende uma mudança que compute o índice entre janeiro e dezembro. Já que a inflação de dezembro deste ano será maior do que a de julho atual, e tal modificação permitirá um gasto de mais de R$83 bilhões em 2022, de acordo com o Ministério da Economia.
Por mais que pareça sutil, tal mudança representa a morte do teto. O que fez o mecanismo ser eficaz até o momento é, justamente, a confiança que os agentes depositam que suas regras são de fato “pra valer”. À medida que o governo sinaliza ao mercado que, sempre que “calo apertar” vai mudar a regra, é o mesmo que dizer que esta medida só existe quando for conveniente ao governo, estando ele com suas despesas abaixo do estabelecido. Ora, na prática, se a regra muda todas as vezes que o governo teria de fazer uma escolha ou um corte, é verdade a afirmação de que esta regra não existe mais.
A mudança do mês do indexador também é uma escolha ruim. O IPCA ancora o sistema de metas de inflação do Banco Central e o mês de julho foi escolhido porque agosto é o mês no qual o governo envia ao Congresso a previsão orçamentária do ano seguinte. Portanto, o governo passará a enviar o orçamento sem as informações necessárias acerca do quanto poderá gastar. Outro contrassenso.
Somado-se a falta de reformas e privatizações, a possível aposta no modelo asiático de câmbio desvalorizado, apesar de o Brasil ser um país de baixa poupança, pode ter contribuído negativamente para o atual cenário crítico vivenciado pelo país.
O que fazer para evitar?
Os cidadãos podem acompanhar e cobrar dos deputados na votação da PEC dos precatórios, que deve ter sua votação em segundo turno nos próximos dias, bem como exigir melhor formulação do Auxílio Brasil. É preciso questionar se incrementos no bem sucedido Bolsa Família não seriam mais eficazes e se tal mudança de programa não reflete apenas e tão somente um interesse eleitoreiro.
Além disso, dar o calote ou postergar pagamentos daqueles que venceram ações contra abusos, erros do Estado não pode ser caminho para governos, essencialmente para aqueles pretensamente liberais.
Do mesmo modo, ignorar o impacto social da responsabilidade fiscal pode ser uma negligência capaz de descontrolar ainda mais a inflação e a dívida pública, o que vai na verdade impactar fortemente os mais pobres.
Importante conscientizar os parlamentares que a quebra de confiança do fim do teto de gastos vai gerar um custo social grandioso, e o custo e o risco Brasil em alta prejudicam o crescimento, a geração de empregos e as políticas sociais em médio prazo.