Imagine se, toda vez que você precisasse de um remédio, você tivesse que ir à farmácia ser atendido por um médico do estabelecimento que, após a consulta, te daria uma receita. E, ao final, caso não gostasse do preço da farmácia, tivesse que repetir tudo de novo em outra farmácia para conhecer os preços desta segunda. Esse é o mercado de crédito no Brasil hoje.
A Câmara aprovou na última quarta-feira, dia 1° de junho, o PL 4188/2021, que cria o Novo Marco de Garantias. O projeto altera regras para a utilização de garantias em operações de crédito, visando ampliar e baratear o crédito no país. Uma das mudanças, porém, deu o que falar no Twitter ao longo dos últimos dias.
Trata-se da possibilidade de empenho e, consequentemente, eventual execução do imóvel de famílias que têm apenas um imóvel. O dispositivo foi destacado do texto pelo PSOL para votação separada mas, após o Destaque ser rejeitado, o texto original acabou mantido.
Chateado com a rejeição do destaque, o assessor econômico da Liderança do PSOL na Câmara foi ao Twitter e falou sobre a mudança. Afirmou tratar-se da parte mais perversa do texto, por destruir a única garantia de que os bancos não possam tomar a única casa de uma família. Apesar do Destaque do PSOL ter sido rejeitado por 206 deputados (contra 153 favoráveis), ao final de seu tweet, o assessor do PSOL fez questão de mencionar uma deputada em particular: Tabata Amaral, do PSB de São Paulo. Por quais razões escolheu citar apenas esta deputada é uma pergunta cuja resposta não sabemos, mas imaginamos.
Mas o que, afinal, muda com esse projeto? E, em especial, por que alterar a Legislação para permitir que o único imóvel de uma família possa ser utilizado como garantia, podendo assim, eventualmente, ser executado?
O PL 4188/2021, conhecido como Novo Marco de Garantias, tem como principal objetivo facilitar a utilização de garantias e, assim, permitir que mais brasileiros tenham acesso a crédito com taxas de juros menores. A principal inovação do projeto está na criação das Instituições Gestoras de Garantia – IGGs, empresas especializadas em gerenciar os ativos dados como garantias de empréstimos pessoais ou empresariais, desde sua constituição e gestão até sua execução (caso haja necessidade).
Hoje, a pessoa que deseja contrair um empréstimo vai ao banco e o banco avalia as garantias e oferece (ou não) o empréstimo. Com o Novo Marco de Garantias, a pessoa tem seus bens avaliados pela IGG, que fará as avaliações de valor e risco e definirá o valor máximo de empréstimo que os bens dados em garantia podem suportar. De posse do documento emitido pela IGG, a pessoa poderá então ir a diferentes bancos, inclusive bancos digitais, negociar as condições desse empréstimo, como prazos e custos. Como um paciente que, de posse de uma receita médica, vai a diversas farmácias pesquisar preços
Desse modo, espera-se que as IGGs aumentem a concorrência entre os bancos, além de facilitar a atuação de fintechs no mercado de crédito, permitindo assim que os tomadores negociem condições melhores. Ao simplificar a utilização de garantias e permitir que tomadores – especialmente, os mais pobres – tenham mais acesso à crédito a um custo mais baixo, o projeto impulsiona o crédito no país e, assim, contribui para o aquecimento da atividade econômica, bem como a geração de emprego e renda.
O projeto traz outros pontos interessantes, como a quebra do monopólio da Caixa nas operações sobre penhores civis, a simplificação da retomada de veículos comprados por leasing em razão de dívidas e a possibilidade de que um mesmo imóvel seja dado como garantia em diferentes empréstimos (desde que, é claro, o valor total desses empréstimos não supere o valor do imóvel), medidas que devem contribuir para a democratização do crédito no país.
Mas vamos então ao Destaque do PSOL.
Imagine que dois indivíduos querem tomar um empréstimo para reformar sua casa, ou iniciar um negócio. O primeiro tem três imóveis, pode oferecer um como garantia e contrair empréstimos a uma taxa de juros de pouco mais de 1% ao mês. O segundo só tem um imóvel, e a Lei atual o proíbe de oferecer este imóvel como garantia. Sem garantias, só poderá contrair um empréstimo pagando uma taxa de juros de 5% ao mês. Possivelmente, acabará não contratando esse empréstimo e não reformando sua casa ou iniciando seu empreendimento.
Notem, o primeiro, com três imóveis, é provavelmente mais rico, e paga juros menores. O segundo, de renda provavelmente menor, paga juros maiores. E isso ocorre não porque o segundo é mais propenso a não honrar sua dúvida (pelo contrário, as evidências indicam que a inadimplência entre grupos de baixa renda é igual ou menor), mas porque a Lei o proíbe de usar sua propriedade como garantia.
Visando ampliar aos menos favorecidas o acesso ao crédito barato, portanto, o projeto permite que o único imóvel da família seja oferecido como garantia. Por consequência, permite a execução desta garantia em caso de inadimplência. Lembrando que a IGG só poderá executar o imóvel em contratos nos quais o imóvel tenha sido dado como garantia, mesmo quando a dívida for de terceiro (por exemplo, quando alguém que só tem um imóvel o oferece como garantia para um empréstimo de outra pessoa). Quem não optar por utilizar o imóvel como garantia para ter acesso a juros menores não corre risco algum de ter o imóvel executado.
O Destaque do PSOL visava suprimir este dispositivo, impedindo assim, que brasileiros que têm apenas um imóvel possam também ter acesso a crédito mais barato. Ao votar contra o Destaque e a favor do texto original, portanto, Tabata contribuiu para ampliar o acesso ao crédito e reduzir o custo deste crédito justamente para a parcela mais pobre de nossa sociedade. Pena que foi sem querer.