A qualidade da democracia depende de quatro requisitos. Primeiro: a ausência de dissonâncias inconciliáveis, ao estilo sunitas x xiitas. Segundo: uma socioeconomia que atenda ao povo (a escassez enfraquece a democracia). Terceiro: atores políticos competentes e éticos. E quarto, objeto deste artigo: um universo eleitoral razoavelmente apoiado em capacidade de avaliar opções políticas e dotado da segurança que neutralize a sedução viciosa.
Quando é grande a distância entre a inclusão política e as inclusões social e econômica, a base da pirâmide social, cujo justo desejo de vida digna se situa acima da política, tende à frustração e ao voto sem entusiasmo, viciado pelo baixo padrão ético das promessas milagrosas e da mistificação da verdade. A democracia não pode funcionar bem com eleitorado como o refletido no diálogo e na situação descritos a seguir. Diálogo em fila de votação de 3 de outubro: “Qual é mesmo o número da mulher do Lula?” “A mulher do Lula não é candidata.” “O número daquela mulher que o Lula mandou votar nela.” Situação: conforme publicado na mídia, eleitores foram reclamar na polícia o não pagamento de seus votos na eleição de 2002, prometido por candidato! Some-se aos disparates dessa natureza o fascínio do assistencialismo, que, mesmo se racional, dilui a dignidade cidadã e a já normalmente diminuta atenção à ética na política e gera a gratidão vassala a políticos confundidos com o Estado benfeitor!
Para esses eleitores, qual é a lógica na escolha de suas opções eleitorais?
Na Primeira República e na democracia de 1946 havia discordância de ideias, normal na democracia, mas descomedimentos graves eram raros. Já nos últimos decênios isso mudou. O crivo da eleição não tem melhorado o padrão da política, que vem até apresentando sintomas de piora, tanto assim que agentes políticos de precária qualificação são eleitos e reeleitos. Bem disse um deputado: “Estou me lixando para a opinião pública… Vocês batem (a mídia), mas a gente se reelege… Tenho sete mandatos…” Palavras de desprezo pelo povo, que, por seu lado, não valoriza sua responsabilidade cívica, haja vista os sete mandatos daquele deputado! O político lixa-se para o povo e o povo lixa-se para a política desacreditada, para a ética na política.
As disfunções do processo eleitoral vêm sendo exponenciadas pela propaganda ilusória, que lhe confere uma conotação mais de disputa publicitária sensacionalista do que de disputa política pautada por ideias. Deforma a política com a combinação de imagens (TV) e textos de precário nível mental e estético, influente sem exigir saber ler, e leva o eleitorado mais vulnerável a abdicar de sua soberania mental às parvoíces simpáticas, que atendem à sua necessidade psíquica de ilusão – parvoíces que compelem o telespectador cônscio ao uso do botão mute do controle da TV, como precaução profilática mental.
Não há na História democracia bem-sucedida construída sobre alicerces eleitorais frágeis. Todas as democracias hoje consagradas eram seletivas numa primeira etapa, em que foram construídas as bases populares de suas democracias de massa. A precariedade dessas bases no Brasil ajuda a entender a eleição de políticos essencialmente dedicados ao usufruto do poder, alheios às questões fundamentais que os excedem, a interpretar a reeleição como absolvição pelo voto, a entender a eleição de personagens caricatas ou exóticas, beneficiárias dos votos de desesperança ou protesto – antes da urna eletrônica, direcionados para desabafos zoológicos, a exemplo do rinoceronte Cacareco, que teve votação expressiva -, despreparadas para a política, mas puxadoras de legenda. Ajuda a compreender a expressão macunaína – hoje também tiririca – de nossa democracia, em que o eleitor folgazão se diverte com o “pior do que está não fica” e, ao votar no palhaço candidato, faz papel de palhaço eleitor.
O risco de um processo assim viciado é vê-lo, mais dia, menos dia, travestido (na tolerância coletiva) de aval plebiscitário ao semiautoritarismo populista. O socialismo bolivariano de Hugo Chávez, mistura do nacionalismo petroleiro à Mossadegh com o nacionalismo populista de Perón e o socialismo agressivo à legalidade de Allende, é exemplo atual desse paradigma, já visto com simpatia por brasileiros (o próprio presidente Lula chegou a dizer que na Venezuela “há democracia demais”).
Todo esse quadro sugere o risco da ascensão de uma ameaça cujos sintomas já são sensíveis, embora raramente considerados: a ameaça da clivagem pscicopolítica do País. De um lado, a fé emocional no Estado provedor e protetor e nas imagens mitificadas do populismo salvacionista condutor daquele Estado, a alienação refletida na frase “o número daquela mulher que o Lula mandou votar nela” – tendência potencialmente simpática à hipótese do parágrafo anterior. Do outro, a parcela do povo, a que pertence grande parte da classe média, que vê a política com preocupação democrática e procura votar com convicção fundamentada em alicerces racionais – não importa aqui qual a propensão ideológica, se mais à esquerda ou à direita, ela existe em ambas, embora mais no centro.
A ameaça da clivagem, difusa e generalizada, vem correndo o risco de adquirir uma conotação perigosa para a solidariedade nacional tranquila, por acrescentar-lhe a ideia de dimensão territorial, com o Leste (Bahia)/Nordeste prevalecente (sem exclusividade, é claro) na primeira tendência e o Sudeste/Sul, na segunda. Essa inserção, uma vez na mente coletiva brasileira, vai “apimentar” a clivagem com um sabor de defasagem quanto a interesses, objetivos e rumos fundamentais. Se não for revertida, poderá vir a fragilizar o potencial integrado da unidade nacional. O processo eleitoral de 2010 vem evidenciando essa ameaça, que há de preocupar no futuro próximo, até porque suas manifestações tenderão a permanecer vivas – se não acentuadas – depois das eleições.
Fonte: Jornal “O Estado de S.Paulo” – 26/10/10
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