Temos assistido nos últimos meses a um crescente processo de restrição de liberdades sob o argumento de que esta deve ser protegida. Para tal, os ditos defensores da liberdade restringem o acesso da sociedade a textos ou canais de informação, para evitar supostos abusos do uso da liberdade. O mais recente capítulo desse processo foi protagonizado pela Câmara Municipal de Porto Alegre/RS, que aprovou lei proibindo a comercialização, publicação, distribuição, difusão e circulação do conteúdo integral ou parcial da obra Mein Kampf (Minha Luta), de autoria de Adolf Hitler, no município, sob qualquer forma, física ou digital.
Apesar das boas intenções do projeto, o mesmo é ineficaz e pode, em sentido contrário, incentivar a busca pela dita obra. Não há qualquer dúvida que o Mein Kampf é um claro exemplo de uma obra nefasta, pois em suas páginas temos o credo da doutrina nazista em todos seus aspectos: racismo, teses de superioridade racial, defesa do genocídio, dentre outros temas. Contudo, a proibição de acesso a obra pode produzir o efeito exatamente oposto ao que se pretende.
O primeiro motivo de incentivar a busca dessa obra é pelo questionamento que irá provocar: o que este livro tem de tão ameaçador a ponto de provocar sua proibição? A proibição estabelecida pela lei irá provocar questionamentos em quem nunca se interessou pela obra, o que deve gerar um aumento na procura pelo livro. Adicionalmente, não reduz o acesso da obra a grupos neonazistas, pois, além de já possuírem acesso, não irão deixar de o utilizar.
Desses grupos surge o segundo motivo que provoca a ineficácia da lei: permite a construção de narrativas de perseguição. É impressionante que os legisladores não percebam que os grupos neonazistas que pretendem coibir, ao verem a proibição da obra, podem criar a narrativa de que eles têm razão, pois caso contrário não haveria motivos para proibir o acesso. Sem acesso franco ao livro, quem irá fornecê-lo a curiosos? Justamente grupos neonazistas. Nada como uma lei para facilitar o recrutamento de jovens pelo neonazismo.
A terceira razão é a impossibilidade da norma de ser aplicada, pois ao proibir o acesso a e-books está-se criando uma norma inaplicável, tendo em vista a natureza transnacional da internet. Mesmo que fosse possível evitar o acesso a livros eletrônicos no território do município, não há como impedir o acesso ao mesmo em outros estados do país ou em outros países. Em ambos os casos, a norma se mostra incapaz de cumprir o que pretende.
Este tipo de norma demonstra a total incapacidade do poder público de estabelecer diálogo sobre os mais diversos temas. O meio mais eficaz de reduzir a influência do Mein Kampf é, justamente, provocar o debate sobre o mesmo, demonstrar o porquê toda a obra parte de premissas erradas e é inválido sob qualquer aspecto. Todavia, a contaminação do ensino com ideologias, o fato de haver se tornado mais importante a formação de militantes que o conhecimento formal, e a incapacidade de muitos em conhecer ideias diferentes para um debate saudável, acabam tornando mais simples esconder as obras do que expor sua falta de consistência cientifica e as razões de ser falha.
Outro fato que fica evidente é que a humanidade demonstra não haver aprendido nada com a história. Não houve nenhum momento da história onde a queima de livros, a proscrição de obras tenha funcionado para qualquer poder instituído que fosse. Não deixa de ser curioso que o nazismo queimou e expurgou diversas obras durante o período que governou a Alemanha, portanto, ao provocar o expurgo do Mein Kampf, a Câmara não deixa de cumprir uma das premissas do nazismo: impedir o debate sobre o que os desagrade.
Não há dúvida que o Mein Kampf é uma obra espúria, mas impedir o acesso a ela é uma das piores atitudes que se possa tomar, pois impede o debate sobre o livro, os efeitos trágicos de sua doutrina na Segunda Guerra Mundial, a nocividade de sua ideologia. Devemos, portanto, demonstrar a total ignorância das ideias defendidas pelo seu autor, tornar claro que seguir essa obra apenas demonstra a vocação totalitária de quem a defenda.
Precisamos provar que Hitler era um homenzinho medíocre, que conquistou, e até hoje conquista, milhares de pessoas pelo uso indiscriminado de uma política populista que apenas conseguiu realizar um dos piores momentos da humanidade em todos os sentidos. Contudo, o mais grave disso é a confissão de que o Poder Público não confia na capacidade de seus cidadãos em ler e interpretar um livro. Talvez, apenas talvez, seja uma assunção de culpa da destruição promovida no ensino nas últimas décadas.