Hoje (quarta-feira, 12/06/2024), a Comissão Especial do Senado votará o Projeto de Lei 2338/23, que visa regulamentar o desenvolvimento e a utilização da inteligência artificial (IA) no Brasil. Apresentado pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e relatado pelo senador Eduardo Gomes (PL-TO), o projeto propõe a criação do Sistema Nacional de Regulação e Governança de Inteligência Artificial (SIA), responsável por harmonizar e colaborar com órgãos públicos federais. O projeto estabelece exigências como avaliações preliminares de risco para novas ferramentas de IA e multas de até R$ 50 milhões para usos irregulares.
O Instituto Millenium entrevistou Andriei Gutierrez, Vice-Presidente da Associação Brasileira das Empresas de Software (ABES) e Presidente do Conselho de Economia Digital e Inovação da Fecomércio, para discutir os impactos do projeto. Gutierrez explicou que o PL 2338/23 pretende criar um marco legal abrangente, impondo uma série de direitos e obrigações regulatórias para organizações públicas e privadas. Ele destacou preocupações com os altos custos de conformidade que a lei pode impor, potencialmente desincentivando investimentos em tecnologia no Brasil.
Gutierrez também abordou a necessidade de alinhar o PL 2338/23 com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) para evitar sobreposições regulatórias e garantir segurança jurídica. Ele questionou a adequação da abordagem inspirada na legislação europeia ao contexto brasileiro e alertou para possíveis consequências negativas de uma regulação excessivamente rígida para o desenvolvimento e a inovação tecnológica no país.
Instituto Millenium: Para começarmos, você pode explicar de forma geral o que é o PL 2338/23 e quais são seus principais objetivos em relação à regulação da inteligência artificial no Brasil?
Andriei Gutierrez: O último relatório que embasa a proposta do Marco Legal da IA no Senado Federal propõe criar um amplo marco legal para regular o uso da IA no Brasil. É uma lei muito abrangente que pode ter um amplo alcance sobre todas as organizações públicas e privadas. Propõe criar uma série de direitos individuais e coletivos, vinculando-os ao uso da IA no Brasil. Também propõe que seja instituído um organismo especial no qual haveria uma superagência centralizada para regular, fiscalizar e sancionar os usos da IA à luz do Marco Legal proposto. Essa agência faria também a coordenação de um coletivo composto por outras entidades regulatórias já existentes no Brasil. Além disso, a proposta estabelece uma série de obrigações regulatórias que as organizações deveriam seguir.
Uma crítica ao PL é o alto custo de conformidade que ele pode impor às empresas, tornando-o a regulação de IA mais onerosa do mundo. Você acredita que isso pode desincentivar investimentos em tecnologia no Brasil? Como as empresas podem equilibrar os custos de conformidade com a necessidade de inovação?
A partir de uma análise comparativa entre os artigos do relatório, é possível ver que cerca de 95% da proposta é destinada a pensar a regulação, enquanto só 5% para o estímulo e a inovação. Essa preferência se materializa em especial nas obrigações regulatórias que as organizações públicas e privadas deveriam seguir.
Uma série de obrigações, relatórios, auditorias – mesmo com algumas dessas obrigações para os usos considerados de baixo risco – certamente trarão mais custos e aumento de carga para as organizações brasileiras, independente do seu setor de atuação ou tamanho. Uma empresa, por exemplo, mesmo que faça usos residuais de IA em seus sistemas de gestão de fornecedores, pessoas, pagamentos, ela terá de fazer análise do grau de risco dos seus sistemas e guardar essa documentação por pelo menos 5 anos.
IM: A ANPD destacou a necessidade de alinhar o PL 2338/23 com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) para garantir segurança jurídica. Como você vê essa integração entre as duas leis e quais são os maiores desafios para as empresas em termos de cumprimento regulatório?
AG: O relatório do Marco Legal da IA traz o risco de ter sobreposições regulatórias e trazer mais insegurança jurídica para as organizações brasileiras. A questão do uso da IA e dados pessoais ou privacidade é mais um exemplo. Na legislação brasileira, a ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados) é a autoridade central para a garantia da privacidade e da proteção de dados pessoais no Brasil, independente da tecnologia utilizada, seja ela uma IA ou um fichário de gabinete. Do ponto de vista conceitual, não seria necessário mais uma lei para garantia da segurança jurídica para o cidadão brasileiro no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais por IA, competindo à ANPD regular esse tema, fiscalizar e eventualmente sancionar se houver alguma infração. Tenho visto muita gente falar de vieses por sistemas de IA como justificativa para a nova lei. Do ponto de vista legislativo e institucional, esse tema já teria mecanismos para garantir sua segurança jurídica.
IM: O PL 2338/23 foi amplamente inspirado na legislação europeia. Você acha que essa abordagem é adequada à realidade científica e empresarial do Brasil? Há aspectos específicos do contexto brasileiro que não foram contemplados na proposta?
AG: É preciso ainda que seja feito um amplo estudo para ter certeza da pertinência da importação de tais regras para o Brasil. Aqui há a criação de uma série de direitos individuais e coletivos que têm o potencial para aumentar consideravelmente o grau de judicialização e intervenção do Poder Judiciário em temas como a governança da IA para dar um exemplo. Esses direitos, aliás legítimos e relevantes, já são amplamente cobertos pelas legislações brasileiras. A questão é se não estamos ampliando demais as atribuições do judiciário para esferas eminentemente privadas ao associá-los ao uso de uma tecnologia que vai estar em todos os processos de todas as organizações. Talvez seja necessário um pouco mais de reflexão e debate sobre esse tema e suas implicações para a economia e a sociedade brasileira antes de avançar.
É preciso amadurecer também a pertinência de se ter uma “superagência regulatória” para a IA no Brasil. A mesma argumentação da pergunta acima poderia ser usada nos temas onde houver relações de consumo, já cobertas pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC) e com ampla regulação pela Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor, de temas concorrenciais, já regulados pelo CADE, ou nos casos onde houver usos em setores já regulados pela ANATEL, ANEEL, ANAC, Banco Central… A pergunta que precisa ser respondida é quais são os riscos dos usos de sistemas de IA no Brasil hoje que já não poderiam ser atendidos pelas leis e instituições já existentes no Brasil. Criar uma superagência regulatória para o tema não parece à primeira vista ser a melhor opção pois além de não parecer ser o mecanismo mais eficiente para a segurança jurídica de empresas e cidadãos, poderá acarretar em altos custos para o Estado e para os contribuintes com a sua estruturação e custeio.
Por outro lado, é importante que se pense em mecanismos de cooperação e convergência regulatória entre as instituições e agências regulatórias no Brasil. Um bom exemplo foi o Reino Unido que se propôs a criar uma estrutura de Estado enxuta para tal. Uma estrutura sem função normativa, fiscalizatória ou sancionatória mas que tem o papel de coordenação desses temas junto às agências setoriais e específicas trazendo coordenação e interoperabilidade.
IM: O projeto de lei impõe restrições significativas ao uso de dados para machine learning, especialmente com regras de direitos autorais. Considerando que a IA ainda está em uma fase inicial de desenvolvimento, você acredita que essas restrições podem ser excessivamente rígidas e limitar o potencial de inovação e progresso científico no Brasil? Quais seriam as possíveis consequências de uma regulação tão rigorosa para o futuro da IA no país?
AG: Esse é mais um elemento que mostra que é preciso cautela e prudência no debate sobre o Marco Legal da IA. É preciso que se debata inovação, competitividade e aumento da produtividade brasileira por meio da IA. Certamente essa é a tecnologia mais inovadora e com potencial disruptivo desde a Revolução Industrial. É preciso preparar o país e as organizações para que possam adotá-la de maneira responsável e usufruir dos seus amplos benefícios. A legislação para a IA proposta no Senado Federal é, talvez, a lei mais restritiva do planeta e isso certamente acarretará em entreves para a inovação e a competitividade das organizações brasileiras, além do potencial prejudicar a atração de investimentos.
Um bom exemplo é o potencial de atração de data centers para o Brasil. Sabe-se que os modelos computacionais de IA de grandes volumes de dados necessitarão de um grande consumo de energia. E as empresas que produzem esses modelos já estão preocupadas com a sustentabilidade desse consumo e das suas operações. O Brasil com sua ampla gama de energias renováveis tem grande potencial para ser um dos maiores polos de data centers sustentáveis do planeta, seja para consumo interno ou para exportação de serviços de processamento de dados. Ao adotar uma legislação que regula o desenvolvimento da tecnologia e impor regras gerais para o treinamento de machine learning, já escuta-se no mercado que empresas brasileiras de collocation de data centers estariam perdendo potenciais oportunidades de contratos de empresas estrangeiras preocupadas com as implicações do potencial Marco Legal da IA para essas operações a partir do Brasil.