*Nicole Alvim
A evidente realidade de que a colheita não pode preceder o plantio é amplamente reconhecida. Contudo, e aqui deixaremos à psicologia o dever de explicar, não é irrelevante a quantidade de pessoas que são displicentes perante essa verdade. Historicamente, os governos brasileiros têm demonstrado essa negligência em múltiplas oportunidades. Almejam o desenvolvimento econômico, mas os investimentos e gastos de capital são muitas vezes inadequados e mal orientados. Pregam por um meio ambiente saudável, mas este objetivo permanece morto para além do discurso. Por fim, há um elemento que está sempre presente na infactível lista de desejos do povo brasileiro: uma previdência sustentável.
Desde 1988, o Brasil já atravessou 7 Reformas da Previdência: as Emendas Constitucionais (EC) nº 3/1993, nº 20/1998, nº 41/2003, nº 47/2005, nº70/2012, nº 88/2015 e, mais recentemente, a EC nº 103, de 2018. Nenhuma dessas, entretanto, foi suficiente para atingir a sustentabilidade tão sonhada. Dito isso, apesar de suas propostas modestas diante das necessidades reais, todas foram recebidas com forte resistência por parte da população, especialmente pelos sindicatos trabalhistas, que alegavam que as mudanças retiravam “importantes direitos da classe trabalhadora”. A frequência dessas reformas motivou brincadeiras entre adultos de meia idade, que afirmam que só poderão se aposentar aos 100 anos, e também entre os jovens, que agora acreditam que talvez jamais se aposentem.
Tendo em conta o atual desenho da política previdenciária, essas “brincadeiras” refletem uma realidade preocupante. Cada nova reforma evidencia a incapacidade da anterior em cumprir seus objetivos, e o curto intervalo entre as reformas demonstra tanto a gravidade dos fracassos quanto a seriedade da crise do sistema.
A política da previdência social no Brasil se constituiu sob um mecanismo de repartição simples, onde se esperava que a classe trabalhadora sustentasse a geração anterior por meio de suas contribuições. No entanto, a lógica desse raciocínio apresenta inúmeras lacunas. A mais evidente diz respeito ao envelhecimento populacional, o qual não havia sido inserido na equação. Com o aumento da expectativa de vida e a diminuição das taxas de natalidade, a relação de dependência entre aposentados e a população ativa se torna cada vez maior. Queiroz e Figoli (2014) estimaram que essa relação tornaria a previdência insustentável até 2039.
Outro aspecto preocupante diz respeito ao valor da previdência. No país, esse valor atrela-se aos últimos salários recebidos pela pessoa aposentada – evidentemente, os mais altos de sua carreira. Apesar da crise iminente, o relatório de pensões da Allianz de 2023 indica que o Brasil possui um dos sistemas mais generosos do mundo, com uma relação de benefício de 89% – muito superior a países como a Dinamarca e o Qatar, que possuem uma relação abaixo de 80%. Essa generosidade contribui para o baixo desempenho do país no subíndice de sustentabilidade medido pela entidade, alcançando 4,7 em 7, enquanto o pior resultado dentre os países avaliados foi de 5,3, obtido pelo Sri Lanka. Para fins de comparação, a melhor performance nesse subíndice foi da Indonésia, com uma nota de 2,1, e o Egito, com 2,3. Ambas essas economias impulsionam a previdência pela inclusão de pilares financiados por capital, o que significa que uma parte do sistema de pensões é sustentada por investimentos, ao invés de depender exclusivamente de contribuições dos trabalhadores ou do governo.
Ademais, uma falha frequentemente negligenciada no atual modelo de previdência é a importância da poupança. A macroeconomia reconhece, há anos, a relação intrínseca existente entre a poupança e o investimento, sendo este último crucial para o crescimento econômico. Com a previdência sendo estruturada para que as contribuições da população ativa sejam imediatamente direcionadas aos aposentados, desincentiva-se a prática da poupança, essencial para o crescimento econômico sustentável. Segundo o Banco Central, em 2018, a taxa de poupança doméstica no país foi de apenas 1,8% da renda familiar disponível, ressaltando-se que 60% dessa taxa consistia em imóveis (70% nas regiões do Norte e Nordeste). A baixa taxa de poupança tende a levar a um equilíbrio estrutural de juros mais elevados e câmbio valorizado, criando um ambiente desfavorável ao investimento.
Atribuir toda a responsabilidade pelas baixas taxas de poupança e investimento no país ao regime previdenciário seria uma afirmação imprudente. Para aqueles já expostos ao método Barsi de investimentos, já é reconhecida a fama da poupança como uma “perda fixa”. Isso se deve ao fato de que a nossa altíssima taxa de juros, a qual deveria incentivar a poupança e compensar o “risco Brasil” dos investidores externos, na prática, dificilmente é capaz de compensar a inflação ocasionada pela frágil gestão das políticas fiscais e o endividamento do setor público. Dessa forma, a previdência é apenas um dos inúmeros desincentivos à poupança no país.
O sistema capitalista, por sua natureza, depende do uso do capital como ferramenta para gerar ainda mais capital. Enquanto, na era medieval, a riqueza era encarada como um bem a ser estocado, mantido estacionado, o surgimento do sistema bancário transformou essas reservas em capital circulante, alocando-as na forma de investimento. Essa alocação se transformou em produtividade e, logo, sustentou um crescimento econômico nunca antes visto. O mundo assistiu a pobreza reduzir-se em 80%.
A multiplicação do capital foi tão exitosa que a crise de 1929 se originou de um boom produtivo que superou o crescimento da demanda. Os bancos, incentivados pelo FED a emprestar recursos para manter a economia aquecida, alocaram um valor superior ao disponível em poupança para investimentos. Assim, criaram ‘dinheiro artificial’, sem lastro em riqueza real. Essa disponibilidade artificial de crédito enviou um sinal enganoso ao mercado, sugerindo que ainda havia demanda latente e que um aumento da produtividade seria acompanhado por um aumento do consumo. Como essa demanda era, na verdade, inexistente, ocorreu uma valorização agressiva da moeda, o que elevou o endividamento real das empresas e as levou à inadimplência. A percepção tardia dessas falsas bolhas de prosperidade levou os agentes econômicos a tomar medidas desesperadas, retirando seus ativos dos bancos e da bolsa de valores, o que impulsionou uma falência generalizada. Esse processo que levou à Grande Depressão é sustentado pela Teoria Austríaca dos Ciclos Econômicos (TACE), de Ludwig von Mises, e foi demonstrado por Rothbard em seu livro “A grande depressão americana”.
A teoria de Mises revela a importância do equilíbrio entre o investimento e a poupança para a sustentabilidade do crescimento econômico. Entretanto, a correlação que gostaria de destacar aqui é diferente: não a capacidade da poupança em fomentar o investimento, mas a capacidade do investimento em gerar a “poupança” necessária para sustentar a previdência. É comum que as pessoas esqueçam que a relação entre esses fatores é bidirecional. Da mesma forma que o investimento sem lastro em riqueza real leva a um pico de oferta que não encontra demanda, a riqueza sem lastro na produção tampouco encontrará oferta, levando a uma pressão inflacionária.
A metodologia da repartição simples aplicada à previdência compromete o equilíbrio econômico, pois desvia recursos que naturalmente seriam destinados à poupança e os aloca diretamente no consumo. Sem a formação de poupança, o investimento é prejudicado, resultando em estagnação da produtividade. Mesmo que o governo conseguisse manipular o mercado para forçar investimentos, o cenário resultante poderia se assemelhar à crise de 29. Além disso, as questões demográficas agravam a situação: a crescente relação de dependência revela que há um número maior de pessoas consumindo em comparação com a mão de obra disponível na população ativa. Uma pessoa aposentada não produz, apenas consome, e a maior expectativa de vida significa que as pessoas continuarão consumindo por muito tempo mesmo após sua saída do mercado produtivo. Já a taxa de natalidade decrescente implica que não haverá reposição da mão de obra no futuro. Assim, torna-se insustentável manter o crescente número de aposentados sem uma produção de riqueza equivalente, que deve ser sustentada por um aumento real na produtividade.