Um evento recente do Institute for Government, um dos principais think tanks britânicos, apresentou uma proposta radical: “A New Civil Service Act” (Uma Nova Lei do Serviço Público). O Instituto propôs um projeto de lei desenhado para melhorar a gestão, funcionamento e supervisão do serviço público – enquadrando-o como uma intervenção oportuna à luz de desafios administrativos de longa data que não são exclusivos do Reino Unido.
A discussão se mostrou refrescantemente realista sobre os desafios enfrentados pelos sistemas modernos de serviço público em todo o mundo. Em um momento em que vemos tanto tentativas de desmantelamento radical da burocracia (como nos Estados Unidos) quanto reações defensivas que glorificam o isolamento burocrático como virtude democrática, o debate britânico focou em questões mais fundamentais: Qual é o papel constitucional do serviço público em um sistema democrático? A quem deve prestar contas? Como as linhas de comando devem ser organizadas? Como garantir administração eficaz mantendo supervisão democrática?
Essas questões são universais. Países como o Brasil, que enfrentam desafios similares de capacidade estatal e responsabilização democrática, podem extrair lições importantes dessa abordagem mais sofisticada ao problema.
O falso dilema da politização
O debate convencional sobre reforma do serviço público tende a apresentar um falso binário: politização versus autonomia burocrática. Este enquadramento perde o paradoxo constitucional mais profundo no coração das instituições públicas. Elas devem simultaneamente responder a governos democraticamente eleitos enquanto mantêm continuidade institucional e defendem princípios constitucionais. Este paradoxo não pode ser resolvido através de simples deferência ou resistência – requer design institucional sofisticado.
No Brasil, esse dilema se manifesta de forma particular. De um lado, temos uma burocracia que às vezes se isola excessivamente da direção política, criando “feudos” técnicos que resistem a mudanças legítimas. Do outro, vemos tentativas de aparelhamento que comprometem a capacidade técnica do Estado. A questão não é escolher entre esses extremos, mas desenhar sistemas que traduzam efetivamente mandatos democráticos em implementação competente.
Em vez de perguntar se o serviço público deveria ser mais ou menos politizado, deveríamos perguntar como desenhar sistemas que garantam que governos eleitos possam implementar seus programas mantendo padrões profissionais. Isso significa criar o que podemos chamar de “sistemas democráticos de entrega”: arranjos institucionais que conectam legitimidade democrática com competência técnica.
O problema da responsabilização
No coração dos desafios do serviço público está um problema clássico: líderes políticos delegam implementação a servidores públicos que possuem conhecimento especializado e informação que os políticos não têm. Esta assimetria de informação cria incentivos perversos onde servidores públicos podem reter informação crítica para manter autonomia, enquanto políticos fazem promessas sem compreender completamente os desafios de implementação.
O sistema atual frequentemente promove comportamentos defensivos ao invés de resultados. Servidores públicos se protegem de críticas potenciais evitando risco, enquanto políticos fazem promessas irrealistas. Esta dança disfuncional mina a governança eficaz e corrói a confiança pública – um padrão que vemos repetido em muitos países, incluindo o Brasil.
A proposta britânica tenta abordar isso criando fluxos duplos de responsabilização: um para política (onde os secretários executivos respondem aos ministros) e outro para operações (onde respondem ao chefe do serviço público). Esta distinção, embora imperfeita, fornece maior clareza sobre quem é responsável pelo quê – algo que poderia ser útil em contextos como o brasileiro, onde as linhas de responsabilidade são frequentemente nebulosas.
Capacidade como questão democrática
Um aspecto crucial que merece destaque é que capacidade estatal é em si um imperativo democrático. Sem implementação capaz, escolha democrática se torna sem sentido, já que autoridades eleitas não podem cumprir suas promessas, e o público perde fé nas instituições democráticas. Este é um desafio particularmente agudo em países como o Brasil, onde déficits de capacidade estatal limitam severamente a efetividade governamental.
O Institute for Government reconhece esta conexão entre decisividade executiva (linhas claras de responsabilização) e capacidade de recursos humanos (melhores salários, treinamento e planejamento de força de trabalho). Isso cria um ciclo virtuoso: responsabilização mais clara cria incentivos para desenvolvimento de capacidade, que por sua vez possibilita melhor entrega de mandatos democráticos.
O sistema atual em muitos países sofre do que podemos chamar de “dívida de habilidades” – lacunas crescentes entre as capacidades necessárias para abordar desafios políticos complexos e as habilidades reais disponíveis dentro do serviço público. Esta dívida se acumula quando os governos falham em investir em desenvolvimento de capacidade de longo prazo, focando apenas em vitórias políticas de curto prazo.
A proposta britânica sugere uma abordagem mais integrada, onde a autoridade para gestão de pessoas esteja combinada com controle orçamentário. Isso ecoa propostas mais radicais que reconhecem que eficácia operacional requer autoridade tanto sobre implementação quanto sobre recursos. Sem o “poder da caneta” por trás de mandatos operacionais, funções transversais lutam para superar resistência departamental.
Abertura como virtude democrática
Talvez de forma mais provocativa, a discussão britânica sugere que o serviço público deveria ser mais, ao invés de menos, permeável à influência externa. Em vez de ver perspectivas externas como ameaças à autonomia burocrática, a abertura poderia ser reformulada como uma virtude democrática – permitindo múltiplos canais de influência, escrutínio e feedback para fortalecer tanto a capacidade quanto a responsabilização.
A proposta sugere um Conselho do Serviço Público externo com poderes substanciais para responsabilizar a liderança por desempenho e capacidade. Este tipo de supervisão externa introduz uma forma valiosa de controle democrático além do controle ministerial direto.
Mas abertura pode tomar muitas formas: comissões parlamentares com papel mais sistemático em avaliar eficácia de implementação, intercâmbio estruturado de talentos com outros setores, incorporação de perspectivas cidadãs através de medição de valor público, e interfaces mais dinâmicas entre o serviço público e organizações da sociedade civil. Estes múltiplos canais criariam um ecossistema mais equilibrado de responsabilização que aprimora tanto responsividade democrática quanto excelência profissional.
Para países como o Brasil, isso significa repensar a relação tradicional entre “dentro” e “fora” do Estado. Em vez de silos impermeáveis, precisamos de fronteiras mais porosas que permitam fluxo de conhecimento e responsabilização sem comprometer a continuidade institucional necessária.
Lições para reforma no Brasil e no mundo
A distinção entre “política” (o que deveria ser feito) e “operações” (como deveria ser feito) é central à proposta britânica. Embora esta distinção possa trazer clareza às linhas de responsabilização, a fronteira entre elas é frequentemente nebulosa e requer gestão cuidadosa. Escolhas políticas inevitavelmente moldam possibilidades operacionais, e restrições operacionais influenciam que políticas são viáveis.
Isso aponta para um desafio mais profundo: como reformar um sistema que é responsável por implementar suas próprias reformas? O serviço público é simultaneamente o objeto da reforma e o instrumento através do qual a reforma deve ser alcançada – um paradoxo que ajuda a explicar por que mesmo mudanças bem desenhadas frequentemente falham em se manter.
O serviço público é construído sobre paradoxos constitucionais duradouros – tensões entre responsividade e continuidade, expertise e controle democrático, unidade e especialização, estabilidade e inovação – que nunca podem ser completamente “resolvidos” mas apenas gerenciados através de design institucional deliberado.
A proposta britânica oferece uma abordagem equilibrada em um momento em que o argumento de “proteger a imparcialidade do serviço público” está sendo cada vez mais capturado por interesses corporativistas defensivos. Ao clarificar linhas de responsabilização, investir em desenvolvimento de capacidade e fortalecer a supervisão, aborda diretamente as contradições que definem a administração democrática.
Se o serviço público deve ser transformado em uma verdadeira “máquina de entrega” da democracia, são necessárias não apenas regras mais claras mas também melhores controles: mecanismos que garantem que competência profissional e continuidade constitucional trabalhem junto com genuína responsividade pública. Isso significa empoderar cidadãos para responsabilizar o serviço público, enquanto dá aos servidores públicos condições para inovar sem sacrificar a memória institucional.
O debate provocado pela proposta britânica oferece insights vitais para qualquer um lidando com reforma do serviço público, de Westminster a Washington, Brasília a Berlim. Lembra que fortalecer governança democrática é menos uma questão de ajustes técnicos do que de reimaginar como expertise, responsabilização e liderança política podem ser tecidas juntas. Para o Brasil, país que enfrenta desafios agudos tanto de capacidade estatal quanto de responsabilização democrática, essas lições são particularmente relevantes.