*Nicole Alvim
O que você faria se o seu país se tornasse uma ditadura? Essa é uma questão que deve estar cada vez mais presente entre as populações que, atualmente, estão sob regimes democráticos de direito. O relatório Liberdade no Mundo (Freedom in the World) de 2025 revelou que a quantidade de países com score decrescente no índice de liberdade superou a quantidade de países com aumento no score pelo 19º ano consecutivo. O índice de liberdade, calculado pela Freedom House, leva em consideração liberdades civis e direitos políticos em cada país, e abrange um total de 195 países e 14 territórios em disputa.
Os brasileiros não podem se considerar protegidos desta ameaça. Apesar de ainda se enquadrar como “livre”, desde 2017 – último relatório disponível – o Brasil sofreu uma queda consistente no índice, de 79 para 72 pontos. No índice de liberdade na internet, a queda foi menor, mas o score é ainda mais crítico. De 68 pontos em 2016 para 65 pontos em 2025, o Brasil se consolidou como um país apenas parcialmente livre quando se diz respeito ao mundo digital.
Essa questão não é irrisória. No livro “O Tamanho das Nações” (2003), de Spolaore e Alesina, os autores alertam que governos do tipo “Leviathan” podem tentar influenciar e reprimir o comportamento do indivíduo de forma a tornar a população mais homogênea. Essa homogeneização, que tem por objetivo reduzir as insatisfações e possíveis revoltas por parte da população, pode ser promovida, dentre outros métodos, pela propaganda. Isso torna a mídia e as redes sociais algumas das primeiras vítimas de governos autoritários.
Pelos dados do relatório Liberdade no Mundo, são raros os países livres que não possuem a internet igualmente livre. Gana, outro país na mesma condição que o Brasil, teve o score severamente prejudicado por problemas de infraestrutura e altos valores da internet, e não por suposta tentativa de exercer controle sobre os meios de comunicação. Já a Coreia do Sul, que também apresenta um baixo score em liberdade na internet, recentemente enfrentou uma tentativa explícita de golpe por parte de seu presidente, apesar de ser considerado historicamente um país amplamente livre em liberdades civis.
Recentemente, novas atualizações a respeito do planalto têm gerado preocupações. O governo federal iniciou um movimento firme em direção à regulamentação das redes sociais, cuja inspiração provém expressamente do péssimo exemplo da ditadura chinesa. Além disso, a postura do judiciário tem se tornado cada vez mais desconectada das expectativas constitucionais. Desde jornalistas sendo multados severamente por comunicar o rendimento de juízes – informação disponível publicamente no Portal da Transparência – a abusos por parte do STF que podem levar ministros a receberem sanções internacionais, as notícias tem se tornado cada vez mais graves, mas nenhuma tentativa de correção foi percebida até então. Esses fatores demonstram uma preocupante falta de controle sobre o poder judiciário, e igualmente preocupante excesso de controle sobre os meios de comunicação no país.
Contudo, este artigo não tem por objetivo levantar temor contra as más notícias, mas sim compartilhar o otimismo em relação às boas. Isto é: o poder das novas tecnologias que podem auxiliar na proteção da população contra as sofisticadas ferramentas de controle utilizadas pelo Estado. Recentemente, tive a oportunidade de presenciar um fenômeno curioso em Florianópolis, conhecido como “Pop-up City”. Localizada em Jurerê Internacional, com sede na Founder Haus, a comunidade da auto-denominada Ipê City foi influenciada, tal como outras Pop-up Cities, pelo livro “The Network State” de Balaji Srinivasan, que ensina como construir um “Estado em rede”. Esse Estado, em teoria, começa como uma comunidade digital e descentralizada, que compartilha valores e objetivos comuns, e se desenvolve antes de buscar adquirir terra e reconhecimento – uma rota oposta à dos Estados tradicionais. O movimento apoia a teoria de que as velhas instituições nas quais a sociedade confia hoje estão se tornando obsoletas, como o Estado e o sistema financeiro, e que a tecnologia será uma ferramenta imprescindível para corrigir esse curso.
As Pop-up Cities fazem parte de um ecossistema muito maior, que envolve desde DAOs (Organizações Autônomas Descentralizadas) a Charter Cities. Elas atuam como laboratórios de governança para estes outros atores, e usam de tecnologias como as IAs e a blockchain (Web3) para criar soluções descentralizadas para a área de finanças (DeFi), ciência (DeSci) e infraestrutura (DePIN), dentre outras. Saúde, educação e justiça são outros setores que recebem grande atenção, uma vez que são parte essencial de qualquer sociedade. Contudo, em um contexto de crescente autoritarismo, as Pop-up Cities representam mais do que um fascinante experimento social. As tecnologias descentralizadas que são desenvolvidas e democratizadas por esse movimento podem ser armas poderosas contra os abusos dos Estados autoritários.
Interferências no sistema financeiro, por exemplo, podem ser evitadas a partir do uso de carteiras de criptoativos descentralizadas, como a Picnic e a Metamask, dentre várias outras. Essas carteiras já disponibilizam cartões que utilizam sistemas como VISA e Mastercard, permitindo que transações cotidianas sejam feitas com cripto a partir da transformação instantânea de stablecoins, como USDC, em moedas fiat (produzidas por Bancos Centrais). As criptomoedas também possuem a seu favor uma resistência natural a regulamentações, evitando taxações e bloqueios por parte do governo central.
Para a justiça, a tecnologia atual também contribui com contratos inteligentes. Para aqueles que aprendem a aplicá-los, a eficácia ou não do judiciário pode se tornar bem menos preocupante, pois estes contratos garantem que uma parte só possa receber sua compensação devida após comprovar sua própria entrega. Essa verificação é feita pelo próprio sistema, evitando abusos de uma parte pela outra, e não permite alterações após o contrato ser firmado. Apesar de ainda ser um sistema rígido, o que gera certos inconvenientes, é uma alternativa interessante para aqueles que desejam proteger suas relações empresariais, mas estão muito expostos a fraudes e se vêem constantemente negligenciados pelo setor judiciário centralizado.
No que diz respeito a redes sociais, o sistema da Web3 permite a construção de redes totalmente descentralizadas e privadas. Protocolos como o Nostr buscam garantir que o usuário tenha total controle sobre os seus dados e a sua identidade. Enquanto outras plataformas já tentaram o mesmo, como o Telegram, o protocolo Nostr não possui um responsável ou um servidor central que possam ser ameaçados, tornando-o resistente à censura de uma forma que redes sociais centralizadas jamais conseguiriam reproduzir.
As infraestruturas descentralizadas são um desafio devido aos custos de implementação, mas também estão se expandindo. Na Ipê City, rádios de banda estreita foram espalhados pela ilha de Florianópolis e devem permitir que serviços de trocas de mensagem, transações com criptomoedas e localização se mantenham mesmo no caso crítico em que circunstâncias externas interrompam o acesso à internet na região.
A tecnologia da blockchain, sua expansão para a Web3 e o desenvolvimento das IAs dão margem ao desenvolvimento de novas ferramentas e produtos absolutamente disruptivos. Com a dedicação de desenvolvedores motivados a tornar o mundo mais democrático e igualitário, essas tecnologias tendem a se aprimorar ainda mais no futuro e atingir escalas sem precedentes. Com esse empoderamento popular, no futuro, é possível que sejamos capazes de dizer que até as ditaduras se tornaram obsoletas.
Diante de todas essas possibilidades, resta a pergunta: você estaria preparado para resistir, adaptar-se e proteger sua liberdade se o seu Estado se tornasse uma ditadura amanhã?
*Nicole Alvim é estudante de Graduação em Gestão Pública na Fundação João Pinheiro e membro do Grupo de Estudos Estado e Liberdade (ELIB) da instituição.