Durante meu período de pesquisa na Alemanha, uma das descobertas mais surpreendentes tem sido compreender como funciona a administração da justiça alemã. Para um brasileiro acostumado com a autonomia plena do Poder Judiciário consagrada na Constituição de 1988, o modelo alemão revela uma separação conceitual fundamental: uma coisa é a independência dos juízes para julgar, outra completamente distinta é quem administra os recursos, edifícios e estruturas que permitem à justiça funcionar.
Na Alemanha, os juízes são absolutamente independentes – o artigo 97 da Constituição é cristalino ao estabelecer que “os juízes são independentes e apenas subordinados à lei”. Magistrados vitalícios não podem ser destituídos ou transferidos contra sua vontade, e seus vencimentos são irredutíveis. A blindagem constitucional da função jurisdicional é tão rigorosa quanto a brasileira. A diferença crucial está em quem cuida dos aspectos materiais da justiça: enquanto no Brasil cada tribunal gerencia autonomamente seu orçamento, pessoal e infraestrutura, na Alemanha essas funções recaem sobre o Poder Executivo, especificamente os Ministérios da Justiça em nível federal e estadual.
O conceito alemão de Justizverwaltung (administração da justiça) engloba tudo aquilo que não é a atividade jurisdicional propriamente dita. Quando um tribunal alemão precisa de mais funcionários, reformar um prédio ou adquirir sistemas de informática, quem decide e executa é o Ministério da Justiça competente, não o próprio tribunal. Essa divisão de responsabilidades deriva de uma concepção particular de legitimidade democrática: como os juízes exercem poder sobre os cidadãos através de decisões vinculantes, mas não são eleitos, a gestão dos recursos públicos que sustentam seu trabalho deve ficar sob controle de autoridades politicamente responsáveis perante o parlamento.
A gestão compartilhada dos recursos
Na prática, isso significa que os tribunais alemães não possuem orçamento próprio. As necessidades financeiras de cada tribunal são avaliadas pelo Ministério da Justiça correspondente, que consolida essas demandas em sua proposta orçamentária anual. É o ministério quem vai ao parlamento defender os recursos necessários para o funcionamento da justiça, prestando contas politicamente por esses gastos. Uma vez aprovado o orçamento, o ministério administra a distribuição dos recursos entre os diversos tribunais de sua jurisdição.
Tome-se o exemplo da Renânia do Norte-Vestfália, o estado alemão mais populoso. O Ministério da Justiça local possui um departamento específico responsável pela administração de pessoal de toda a justiça estadual (aproximadamente 43 mil servidores). Esse departamento cuida do planejamento de recursos humanos, realiza concursos, efetua nomeações, define lotações e gerencia a progressão na carreira. Os funcionários que trabalham nos tribunais (escrivães, oficiais de justiça, técnicos de informática) são formalmente empregados do estado, subordinados administrativamente ao Ministério da Justiça, não ao Poder Judiciário.
A gestão de infraestrutura segue a mesma lógica. Os prédios dos tribunais pertencem ao patrimônio público administrado pelo governo. Quando surge a necessidade de construir um novo fórum, é o Ministério da Justiça que elabora o projeto, solicita recursos no orçamento estadual e, uma vez aprovado pelo parlamento, supervisiona a licitação e execução da obra. Os tribunais funcionam como usuários dessas instalações, mas não detêm controle sobre questões imobiliárias.
Gestão especializada de facilities
Um aspecto particularmente interessante do modelo alemão é que, em vários estados, tanto a gestão dos imóveis quanto a administração da ocupação dos espaços judiciais é delegada a agências especializadas em administração predial pública. Essas entidades (que gerenciam não apenas tribunais, mas todo tipo de edifício público) desenvolveram expertise específica em facilities management, combinando a gestão do patrimônio imobiliário com a otimização do uso dos espaços. Como os tribunais são, via de regra, prédios do Poder Executivo, nos estados que adotam esse modelo eles também ficam sob administração dessas organizações especializadas.
Essa estrutura permite ganhos de escala significativos. Em vez de cada tribunal contratar separadamente serviços de limpeza, segurança e manutenção, uma única entidade especializada negocia contratos abrangentes para diversos tipos de edifícios públicos, obtendo melhores preços e padronizando a qualidade dos serviços. Mais importante, essa centralização facilita o controle de custos, algo crucial num país onde a parcimônia com recursos públicos é valor político fundamental.
A tecnologia da informação segue padrão semelhante. As políticas de TI judicial são definidas por órgãos ligados ao Ministério da Justiça, que estabelecem padrões técnicos unificados, contratam empresas de software e implementam sistemas de gestão processual. Tribunais individuais não contratam grandes sistemas de TI por conta própria, já que essas decisões são tomadas pelo Ministério, permitindo maior integração e segurança dos dados.
A seleção de magistrados também reflete essa divisão de responsabilidades, com o Executivo participando formalmente das nomeações mas dentro de critérios técnicos objetivos e com participação de órgãos colegiados que incluem membros da própria magistratura, impedindo indicações excessivamente politizadas.
Contrastes com a realidade brasileira
Para quem cresceu sob a ordem constitucional de 1988 no Brasil, esse modelo causa surpresa. Desde 1988, nossa Constituição assegura ao Judiciário autonomia administrativa e financeira plena. Cada tribunal elabora sua própria proposta orçamentária, gerencia seus servidores, administra seus prédios e define suas políticas de tecnologia. O Poder Executivo atua apenas como consolidador técnico das propostas judiciais no orçamento geral, sem poder modificá-las além de eventuais ajustes para adequação aos limites da Lei de Diretrizes Orçamentárias.
Essa autonomia brasileira foi pensada como blindagem contra interferências políticas, memória do período autoritário quando o Executivo controlava a máquina judiciária. O resultado foi um Judiciário que se tornou gestor integral de si mesmo, capaz de decidir rapidamente sobre suas necessidades e implementar soluções sem depender de outros poderes. Tribunais brasileiros podem construir fóruns, contratar sistemas de informática, realizar parcerias público-privadas para infraestrutura – tudo com recursos de seus próprios orçamentos aprovados pelo Legislativo.
As consequências práticas dessa diferença são marcantes. Enquanto na Alemanha o orçamento judicial integra o controle parlamentar regular sobre gastos do Ministério da Justiça, no Brasil cada tribunal negocia diretamente com o Legislativo seus recursos, frequentemente obtendo percentuais crescentes do orçamento público. Em 2023 o judiciário brasileiro custou em 2023 R$ 132,8 bilhões, que equivalem a 1,2% do Produto Interno Bruto (PIB) ou 2,38% dos gastos da União, Estados, Distrito Federal e municípios, um aumento de 9% em relação ao ano anterior. Dados do Conselho Nacional de Justiça indicam que a média mensal de gastos por magistrado (considerando apenas os 18,2 mil juízes em atividade no país) foi de R$ 68,1 mil, valor aproximadamente R$ 24 mil acima do teto do funcionalismo público, que corresponde ao salário de um ministro do Supremo Tribunal Federal.
Legitimidade democrática e controle social
O modelo alemão reflete uma visão particular sobre legitimidade democrática do poder judicial. Como a administração dos recursos que sustentam o trabalho jurisdicional envolve gastos públicos significativos, ela deve permanecer sob controle de autoridades eleitas. Essa separação entre independência funcional e dependência administrativa é vista como mecanismo de freios e contrapesos: juízes decidem livremente nos casos concretos, mas a gestão dos recursos públicos que financiam a justiça fica sujeita ao escrutínio político regular.
Na prática, isso se traduziu numa justiça alemã mais austera em gastos. Enquanto o Brasil consome 1,2% do PIB com seu sistema judicial, a Alemanha gasta apenas 0,39% (dados de 2022), uma diferença de cerca de 3 vezes. Não por limitação de recursos (afinal, a Alemanha é um país rico!), mas por controle mais rigoroso sobre como esses recursos são aplicados. A média internacional de gastos judiciários é de apenas 0,3% do PIB, colocando o Brasil entre os sistemas judiciais mais caros do mundo. Quando um Ministério da Justiça alemão precisa justificar perante o parlamento gastos com construção de novos fóruns ou contratação de pessoal, está sujeito ao mesmo tipo de escrutínio que qualquer outro órgão do Executivo.
Esse controle externo não compromete a independência judicial porque incide apenas sobre os meios, não sobre os fins. Um juiz alemão jamais recebe ordens sobre como julgar um caso específico, e as garantias constitucionais de vitaliciedade e irredutibilidade salarial impedem retaliações diretas. Mas a estrutura que sustenta seu trabalho (prédio, computador, funcionários de apoio) é administrada por quem responde politicamente por esses gastos.
Lições para o debate no Brasil
A experiência alemã não deve ser vista como modelo a ser copiado, mas como demonstração de que independência judicial pode coexistir com controle democrático da administração da justiça. Países com tradições constitucionais distintas desenvolveram soluções diferentes para o mesmo desafio: equilibrar autonomia jurisdicional com accountability no uso de recursos públicos.
O Brasil optou por autonomia máxima como garantia contra interferências autoritárias – escolha compreensível dado nosso histórico. Mas três décadas depois da redemocratização, talvez seja momento de refletir sobre os custos dessa opção. O sistema judiciário brasileiro é hoje um dos mais caros do mundo – em alguns estados, chega-se à situação absurda em que o Judiciário consome mais recursos do que a educação pública. E isso sem contabilizar os gastos com Tribunais de Contas, Advocacia Pública e Ministério Público. Quando tribunais destinam recursos crescentes para financiar remunerações acima do teto constitucional e construir sedes monumentais, enquanto outras áreas carecem de investimentos, surgem questões legítimas sobre prioridades alocativas.
A criação do Conselho Nacional de Justiça em 2004 representou o reconhecimento de que a autonomia plena sem controle externo pode gerar problemas. Mas o CNJ é órgão do próprio Judiciário, com limitações para exercer o tipo de controle que autoridades eleitas exercem sobre outros gastos públicos. A experiência alemã sugere que é possível submeter a administração da justiça a maior controle democrático sem comprometer a independência dos juízes – desde que essa separação seja clara e rigorosamente observada.
Não se trata de defender subordinação do Judiciário ao Executivo, mas de questionar se a gestão de recursos judiciais precisa ser inteiramente insulada do controle democrático regular. A Alemanha demonstra que juízes independentes podem trabalhar em prédios administrados pelo governo, com funcionários contratados pelo Ministério da Justiça e orçamentos controlados pelo parlamento. O essencial é que essa dependência administrativa não se transforme em instrumento de pressão sobre decisões judiciais – algo que as garantias constitucionais alemãs impedem eficazmente.
A reflexão é especialmente relevante em um momento em que se intensificam as críticas aos custos do Judiciário brasileiro e ganham espaço propostas questionáveis de controle sobre a atividade jurisdicional. A experiência alemã demonstra que é possível ter uma administração judicial mais comedida e sujeita a controle social, sem comprometer a independência dos magistrados. A chave está em distinguir com clareza entre administrar a justiça e interferir na justiça – distinção que o modelo alemão preserva há décadas, assegurando tanto a eficiência no uso dos recursos quanto à proteção da função jurisdicional. Talvez seja hora de o Brasil considerar que autonomia administrativa não deveria ser sinônimo de privilégio ou corporativismo.