Há alguns anos, um fantasma ronda o debate federativo brasileiro, ressurgindo com a regularidade das estações: a suposta inviabilidade de centenas de pequenos municípios. A discussão, invariavelmente, descamba para uma solução que soa tanto drástica quanto simplista: a fusão ou extinção. Olhamos para o tamanho do problema e propomos o machado, quando talvez precisássemos da engenharia de precisão de um relógio suíço.
É na Alemanha, terra dessa engenharia, que encontramos um dos mais sofisticados exemplos de organização política local, uma lição que o debate brasileiro teima em ignorar. Não se trata de um modelo a ser copiado, mas de uma fonte de inspiração para o que mais nos falta hoje: imaginação institucional.
Para entender a organização alemã, é preciso primeiro absorver um princípio quase sagrado, inscrito em sua Constituição: a garantia da autonomia municipal (kommunale Selbstverwaltung). Toda e qualquer comunidade, não importa o tamanho, tem o direito de gerir seus próprios assuntos. O ponto de partida não é a desconfiança sobre sua capacidade, mas a afirmação de sua soberania local. A questão que define toda a arquitetura do sistema é: como garantir que essa autonomia seja efetiva e não apenas uma ficção no papel?
Onde a autonomia começa
A Gemeinde é o ponto de partida da organização territorial alemã. Mas isso não a torna um elemento menor. Pelo contrário: é ali que se concentram os serviços que moldam a experiência cotidiana da cidadania – creches, escolas primárias, vias locais, espaços públicos e até os corpos de bombeiros voluntários. Esse arranjo vale tanto para metrópoles como Berlim quanto para vilarejos como Binzen, com menos de 3 mil habitantes.
Contudo, os alemães reconheceram pragmaticamente que um vilarejo não tem escala para construir e gerir um hospital ou uma escola profissionalizante. No Brasil, essa responsabilidade recairia de forma difusa sobre o governo estadual, criando um vácuo de coordenação. Na Alemanha, a solução foi criar uma camada intermediária de governo local: o Landkreis.
O Landkreis não é uma instância superior que tutela os municípios; ele é uma emanação deles. Trata-se de uma associação obrigatória de municípios de uma mesma região, com um conselho próprio eleito diretamente pelos cidadãos daquelas cidades. Sua razão de existir é assumir as tarefas que são grandes demais para um município sozinho, mas locais demais para serem geridas pela capital do estado.
O Landkreis de Rostock, no norte da Alemanha, exemplifica essa lógica. Ele agrupa dezenas de municípios rurais e pequenas cidades. Enquanto cada Gemeinde cuida de suas escolas primárias e praças, o distrito opera o hospital regional, administra as escolas técnicas, processa o licenciamento de veículos para toda a região e coordena os serviços sociais mais complexos. Sem essa estrutura, cada município tentaria resolver essas questões isoladamente ou dependeria de decisões tomadas em Schwerin, a capital estadual distante.
No Brasil, temos essencialmente dois níveis de governo localmente relevantes: o Estado e o Município. A Alemanha insere uma camada funcional e cooperativa entre eles, resolvendo o problema da escala sem eliminar a autonomia local.
A diferença que importa: cidades independentes e cooperação sob medida
Grandes cidades como Munique, Colônia e Frankfurt tem outra escala. Não dependem de consórcios regionais para operar hospitais ou redes de transporte. Para elas, o sistema criou uma figura própria: a Kreisfreie Stadt — literalmente, “cidade livre de distrito”. Nesse arranjo, a cidade concentra as competências que, em outros casos, seriam partilhadas com o Landkreis. Em vez de impor um molde único, o modelo alemão parte de um princípio simples: realidades distintas exigem arquiteturas de poder diferentes.
Essa arquitetura produz consequências práticas. Quando é preciso construir um metrô que conecte uma cidade independente a seu entorno, a mesa de negociação é mais simples. De um lado, a prefeitura da cidade grande; do outro, a administração do Landkreis, representando os interesses consolidados de seus membros. Isso não elimina conflitos sobre quem paga o quê, mas cria um diálogo de igual para igual entre dois grandes atores regionais. No Brasil, o mesmo projeto fragmentaria a negociação entre dezenas de prefeitos e o governo estadual, multiplicando os custos de coordenação.
O pragmatismo alemão oferece ainda ferramentas adicionais. Em áreas rurais, vilarejos se unem em uma Verbandsgemeinde – um escritório administrativo compartilhado que cuida da burocracia, preservando a identidade política de cada um. Para problemas específicos que cruzam fronteiras, criam os Zweckverbände (consórcios de finalidade específica). O consórcio de transporte da região de Hannover, por exemplo, foi criado em 1970 com uma única missão: coordenar o transporte metropolitano. Missão cumprida, o consórcio pode até ser dissolvido.
Um federalismo policêntrico
O federalismo alemão pratica também a desconcentração geográfica. Nem todos os órgãos federais ficam em Berlim. O Tribunal Constitucional Federal opera a partir de Karlsruhe. O Banco Central, em Frankfurt. A Agência de Emprego, em Nuremberg. A Baviera não concentra tudo em Munique. Essa distribuição cria uma rede policêntrica de desenvolvimento que contrasta com a macrocefalia administrativa que vemos no Brasil.
O convite à imaginação institucional
Ao observar essa arquitetura, o debate brasileiro sobre “enxugar municípios” soa como uma conversa anacrônica e limitada. A questão talvez não seja se um município pequeno tem “capacidade de se sustentar”, mas sim que estruturas de cooperação podemos criar para que ele seja funcional.
A experiência alemã sugere possibilidades que raramente exploramos. E se, em vez de extinguir municípios, qualificássemos a cooperação? Poderíamos transformar nossos consórcios de acordos voluntários em entidades com competências, receitas e governança democrática.
E se fôssemos mais radicais? E se criássemos um sistema onde municípios “tipo B”, menores, contratassem formalmente serviços complexos de municípios “tipo A”, maiores e mais estruturados? Um arranjo com transferência de recursos e metas claras, onde a escala e a expertise de um beneficiassem a todos. Municípios menores pagariam para que os maiores assumissem a gestão da atenção secundária de saúde ou do planejamento urbano regional, mantendo sua identidade política e suas competências básicas.
Não é milagre, é desenho institucional
O sistema alemão está longe de ser isento de fricções. A tensão entre metrópoles e seus entornos é permanente, e há críticas à rigidez e ao custo da coordenação entre níveis. Ele opera, afinal, sobre uma base de alta capacidade estatal, estabilidade institucional e cultura de cooperação – condições que não se transplantam com facilidade.
Mas isso não invalida sua contribuição ao debate. Quando a discussão sobre a viabilidade de pequenos municípios voltar (e ela sempre volta), seria mais útil sair da repetição binária entre extinção e preservação. O que a experiência alemã oferece não é uma receita pronta, mas um horizonte mais ambicioso: o de que é possível redesenhar arranjos locais de poder com foco em escala, eficiência, funcionalidade e legitimidade democrática.
Não se trata de copiar, mas de ousar imaginar. A arquitetura do governo não precisa seguir a inércia. Ela pode – e talvez deva – ser uma forma deliberada de organizar nossa convivência política.