*Danton Moura
O Direito Penal moderno, em sua tradição clássica, sempre se estruturou em torno de um núcleo rígido de garantias fundamentais, cuja função primordial é limitar o poder punitivo do Estado e assegurar a liberdade individual contra arbitrariedades. Essa concepção garantista, fortemente vinculada ao constitucionalismo liberal e aos ideais iluministas, consolidou-se no século XIX e exerceu profunda influência sobre as codificações penais e processuais que moldaram o modelo de Estado de Direito.
No entanto, os desafios impostos pela criminalidade contemporânea cada vez mais complexa, difusa, transnacional e violenta têm revelado as insuficiências do modelo tradicional, deman- dando a revisão de seus pressupostos. O cenário brasileiro é emblemático nesse sentido: segundo dados oficiais do Sistema Nacional de Segurança Pública (SINESP) referentes ao ano-base de 2024, registraram-se 40.874 tentativas de homicídio, um aumento de 7,47% em relação ao ano anterior, resultando em uma média de 112 vítimas por dia. As lesões corporais seguidas de morte cresceram 22,93%, totalizando 729 casos. Os estupros atingiram o número alarmante de
83.114 vítimas, o que equivale a 227 ocorrências diárias, com incremento de 1,11% em relação a 2023.
Somem-se a isso 26.138 mortes no trânsito, 14.928 mortes a esclarecer sem indício definido de crime e mais de 80 mil desaparecimentos, configurando um quadro em que a violência não apenas se intensifica, mas se diversifica em suas formas de expressão. Além disso, segundo o Grupo de Estudos do Novos Ilegalismos da UFF (GENI), o mapeamento territorial da criminalidade revela a gravidade da situação: ao todo, de 2.565,98 km² de área urbana habitada da região metropolitana do Rio de Janeiro, já descontadas a cobertura vegetal, áreas rurais e bacias hidrográficas, 18,2% esteve sob o domínio de algum grupo armado em 2023. Em 2008, as áreas dominadas representavam 8,8%, o que significa que nos últimos 16 anos a área controlada por facções criminosas dobrou, alcançando um crescimento de 105,73%.
Tais dados não são meras estatísticas, mas indicadores objetivos de que a realidade social impõe novos parâmetros de enfrentamento penal, nos quais a rigidez das garantias tradicionais, embora essencial em condições de normalidade, mostra-se insuficiente diante de situações de ameaça permanente e grave à ordem coletiva. É nesse contexto de recrudescimento da crimina- lidade e da insegurança pública que emerge a discussão acerca da chamada “terceira velocidade” do Direito Penal, conceito desenvolvido por Jesús-María Silva Sánchez (2002).
O autor distingue três graus de intensidade da intervenção penal, definidos pela gravidade das sanções e pela rigidez das garantias. Na primeira velocidade situa-se o núcleo clássico: a aplicação da pena de prisão mediante observância integral dos princípios da legalidade, cul- pabilidade e devido processo legal. A segunda velocidade corresponde à adoção de sanções alternativas, como multas e restrições de direitos, nas quais se admite certa flexibilização das garantias, ainda sob estrito controle judicial.
A terceira velocidade, contudo, representa um ponto de inflexão: nela, mesmo quando está em jogo a pena privativa de liberdade, admite-se a relativização de garantias em nome da proteção da sociedade contra condutas que ameaçam de modo direto e intolerável a segurança coletiva. A terceira velocidade não se limita a um endurecimento quantitativo das penas, mas expressa uma mudança qualitativa do modelo de intervenção, deslocando o centro de gravidade do Direito Penal da proteção do indivíduo para a salvaguarda da ordem social.
Essa inflexão conecta-se ao conceito de “Direito Penal do Inimigo” formulado por Günther Jakobs (2008). Segundo o autor, o Estado deve distinguir entre o cidadão, sujeito integrado à ordem normativa, previsível em sua conduta e, portanto, destinatário das garantias, e o inimigo, que por sua atuação reiterada, organizada ou profissional, coloca-se fora do pacto social e converte-se em uma ameaça intolerável à comunidade política. Nesses casos, o Estado não está obrigado a tratá-lo como pessoa de direitos no mesmo nível que o cidadão comum, mas sim como fonte de perigo, legitimando a antecipação da tutela penal, a ampliação de medidas cautelares e a relativização de garantias processuais.
Trata-se de um Direito Penal que assume, em parte, a lógica da guerra, não para negar o Estado de Direito, mas para assegurar sua preservação frente àqueles que, pela própria con- duta, o colocam em risco. O problema central que se coloca, portanto, é o seguinte: como compatibilizar a defesa das liberdades individuais e da dignidade humana, fundamentos do constitucionalismo moderno, com a necessidade de enfrentar uma criminalidade que se apre- senta em patamares de violência massiva, como revelam os números brasileiros de 2024, ou em formas de atuação globalizadas, como o terrorismo, o narcotráfico e a lavagem de dinheiro?
Se a resposta penal permanecer ancorada exclusivamente no modelo clássico da primeira velocidade, corre-se o risco de que o Estado se mostre incapaz de proteger seus cidadãos diante de inimigos que se beneficiam da rigidez garantista. O desafio consiste, portanto, em repensar o equilíbrio entre garantias e segurança, reconhecendo que a relativização das primeiras, em contextos excepcionais, pode ser a única via para assegurar as segundas.
O Direito Penal do Inimigo não deve ser entendido como ruptura do Estado de Direito, mas como instrumento normativo legítimo e necessário para sua preservação. Ao invés de fragilizar as liberdades, sua adoção visa justamente proteger os cidadãos contra os riscos que surgem de ameaças excepcionais, como o crime organizado, o terrorismo e as novas formas de violência transnacional. A incorporação estável de elementos da terceira velocidade do Direito Penal constitui não uma erosão das garantias, mas uma redefinição necessária de seu alcance, destinada a assegurar a proteção dos direitos e liberdades essenciais em sociedades submetidas a níveis elevados de insegurança e violência.
Longe de configurar autoritarismo, trata-se de um mecanismo de autodefesa da comunidade política, que busca preservar a liberdade e a dignidade dos cidadãos frente a atores que, por sua conduta, se colocam fora do pacto normativo.
*Danton Casas Moura é graduando em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Acre (UFAC) e integrante do PET Economia. Atua em pesquisas e tem como área de interesse desenvolvimento econômico, filosofia e a evolução de ideias políticas no contexto brasileiro, unindo formação acadêmica e engajamento social.