A semelhança entre os debates sobre a economia alemã de hoje, em 2025, e aqueles do início dos anos 2000 é impressionante. Alguns termos como “paralisia institucional” retornam com força. A diferença agora é que o contexto se tornou mais agudo e a margem para erro, menor. A perda do gás russo barato desferiu um golpe estrutural no modelo industrial; a guerra na Ucrânia e ascensão do trumpismo nos EUA força uma reavaliação geopolítica; e internamente, o governo de coalizão CDU/SPD sinaliza que o generoso estado de bem-estar social tornou-se financeiramente insustentável.
Se o diagnóstico soa familiar, a busca por um remédio é assombrada por um novo fantasma. A paralisia de hoje alimenta uma oposição de extrema-direita, a Alternative für Deutschland (AfD), que capitaliza o cansaço da população com um sistema que parece incapaz de entregar resultados. Isso cria um paradoxo perigoso: o governo precisa de reformas para aplacar o descontentamento, mas teme que a dor dessas reformas possa ser o empurrão final que leve os eleitores para os braços dos radicais. Nesse dilema, revisitar a mecânica política da Agenda 2010 não é apenas um exercício histórico, mas uma busca por lições sobre os limites da agência política.
A arquitetura da inércia
Para entender por que a mudança estrutural é tão difícil na Alemanha, é preciso compreender sua arquitetura institucional no pós segunda guerra, deliberadamente construída para promover o consenso em resposta ao trauma da centralização política sob o nazismo. Buscando evitar a concentração de poder que permitiu a ascensão de Hitler, a nova constituição alemã criou um forte sistema de freios e contrapesos. Para citar alguns deles: O federalismo é robusto: o Bundesrat, a câmara alta que representa os 16 estados (Länder), detém poder de veto sobre cerca de metade de toda a legislação, especialmente em matérias fiscais e sociais. Adicionalmente, o sistema parlamentar de representação proporcional gera coalizões complexas. O poder judicial é independente e atuante. Os parceiros sociais (sindicatos e associações de empregadores) possuem influência institucionalizada na negociação dos processos de reforma.
Este labirinto de veto players foi projetado para a estabilidade, mas em tempos de crise, seu resultado é o bloqueio.
Foi nesse cenário, no início dos anos 2000, com o desemprego beirando os cinco milhões de pessoas e o fardo da reunificação pesando sobre as contas públicas, que o Chanceler Gerhard Schröder (SPD, de centro esquerda) concluiu que a rota incremental havia se esgotado. A resposta foi a Agenda 2010.
A engenharia da ruptura
A Agenda 2010 foi, em essência, um choque de modernização. O objetivo era flexibilizar um mercado de trabalho engessado e reformar um estado de bem-estar social cujos custos, após a reunificação, eram considerados insustentáveis. Para introduzir um remédio amargo, Schröder entendeu precisar de uma estratégia de ruptura, contornando os canais tradicionais de negociação.
O seu movimento mais dramático foi direcionado ao seu próprio partido. Diante da crescente rebelião na ala esquerda do SPD, Schröder recorreu a uma tática de alto risco: em uma convenção extraordinária do partido em 2003, ele impôs um ultimato. Ou os delegados aprovavam a linha geral da Agenda, ou ele renunciaria à chancelaria e à liderança do partido. Ameaçando jogar o SPD no caos, ele transformou um debate sobre políticas em um voto de confiança, forçando a disciplina partidária através de pura coerção política.
Igualmente crucial para superar o bloqueio institucional foi o fato de que a oposição CDU/CSU (centro-direita), que controlava o Bundesrat, concordava com a direção geral das reformas. Este consenso temporário das elites políticas foi a chave que destravou a república e permitiu uma “blitzkrieg legislativa“, aprovando o pacote de forma abrangente e rápida.
Para desenhar o conteúdo técnico e legitimar as mudanças, Schröder lançou mão de outra manobra estratégica: a criação da Comissão Hartz. Ao nomear Peter Hartz, então diretor de recursos humanos da Volkswagen, para presidi-la, a mensagem era clara: as reformas não eram uma teoria econômica abstrata importada, mas uma solução prática, vinda do coração da indústria alemã. Isso deu às dolorosas leis Hartz I a IV um selo de necessidade técnica, e não puramente ideológica.
A execução foi centralizada numa equipe de aliados de total confiança. Wolfgang Clement, ex-governador da Renânia do Norte-Vestfália (estado mais populoso da Alemanha e tradicional centro econômico do país), assumiu um “superministério” de Economia e Trabalho para implementar as medidas, enquanto Frank-Walter Steinmeier, que o acompanhava como chefe de gabinete desde seus tempos como governador da Baixa Saxônia, operava como o articulador pragmático nos bastidores, garantindo a coesão do gabinete e da coalizão de governo.
As reformas, especialmente a Hartz IV (que fundiu o seguro-desemprego com a assistência social), romperam com o modelo social alemão, criando um vasto setor de baixos salários e “ativando” os desempregados sob ameaça de cortes de benefícios. Economicamente, os resultados foram notáveis: a taxa de desemprego, que estava acima de 11% em 2005, caiu para cerca de 5% na década seguinte. Durante a crise da Zona do Euro, a competitividade alemã permitiu que sua economia se sobressaísse. Mas o custo político foi devastador: o SPD colapsou eleitoralmente, a esquerda se fragmentou com a criação do partido Die Linke, e a desigualdade social aumentou.
A lição e o paradoxo: Em busca de uma nova síntese
O método de Schröder demonstra que o bloqueio institucional alemão pode ser superado. Ele prova que a agência política pode prevalecer sobre a estrutura. Contudo, este blueprint de “autoimolação eleitoral” revela-se perigosamente inadequado para o presente. Em 2005, o poder foi transferido para outro partido do centro, a CDU de Angela Merkel. Hoje, um colapso semelhante do governo poderia beneficiar a AfD, ameaçando o próprio consenso democrático do pós-guerra.
A inação, porém, é igualmente perigosa, pois a estagnação é o terreno fértil do populismo. O desafio para a atual grande coalizão é, portanto, inventar uma nova síntese para a reforma, que aprenda com a Agenda 2010 sem repetir seus erros.
Esta nova abordagem não pode esperar por um consenso social amplo e prévio – essa é a receita para a paralisia. A diferença crucial deve residir em dois eixos: o foco da política e o tratamento de suas consequências. O objetivo primordial precisa ser a geração inequívoca de crescimento econômico, com investimentos massivos em infraestrutura, digitalização e habitação, para demonstrar que o sistema político pode voltar a entregar abundância.
O pilar complementar, e inegociável, deve ser a criação de mecanismos de compensação robustos e visíveis para os “perdedores” da modernização. A nova agenda deve ser uma de “reformar e reparar”, onde os ganhos do crescimento são explicitamente usados para financiar a requalificação profissional e fortalecer redes de segurança para os mais vulneráveis.
Essa aposta exigirá a quebra de tabus. O primeiro será uma flexibilização da ortodoxia fiscal, aceitando mais dívida no curto prazo para financiar os investimentos – um caminho já sinalizado com a criacão de um fundo especial para acelerar investimentos em defesa. O segundo pode envolver uma repriorização pragmática de certas ambições da transição verde, para não sacrificar a competitividade industrial. E o terceiro, talvez o mais sensível, será abordar de forma construtiva as crescentes demandas sociais por uma gestão mais controlada dos fluxos migratórios. Existe uma percepção difundida de que o sistema está sobrecarregado, e responder a essa preocupação é fundamental para reconstruir a confiança e manter a coesão social em um período de turbulência.
A nova agenda de reformas não deveria ser, portanto, um exercício de adesão a dogmas, mas sim de engenharia de compromissos pragmáticos. Isso exigirá a coragem de tomar decisões antes que um consenso amplo (e muitas vezes paralisante) possa ser formado. O financiamento não deveria depender exclusivamente de mais dívida; demandará uma reavaliação corajosa de “vacas sagradas” do orçamento, como a reforma dos custos de longo prazo das aposentadorias (especialmente no setor público) e a eliminação de subsídios e benefícios fiscais para setores pouco produtivos, garantindo que o ônus da modernização seja compartilhado de forma mais equitativa.
O desafio é combinar a determinação de Schröder com uma sensibilidade para os custos sociais que sua agenda subestimou. Trata-se de reformar o presente para financiar o crescimento de amanhã e usar esse crescimento para garantir que ninguém seja deixado para trás. Essa é a única via estreita para a sobrevivência do centro político alemão.