Uma porta, um plano: o que os Jobcenters ensinam sobre autonomia
O Bolsa Família representa um avanço civilizatório que redefiniu a proteção social no Brasil. A vinculação da renda à vacinação e à escola foi mais do que uma condição; foi um investimento calculado na superação da pobreza presente e na capacitação da geração futura. É um legado a ser protegido. Contudo, o próprio sucesso dessa arquitetura nos força a evoluir. O desafio já não é apenas garantir a rede de segurança, mas construir sobre ela uma ponte para o futuro. A pergunta que se impõe é: como ir além do amparo imediato para fomentar, de forma sistemática e intencional, a autonomia de cada cidadão?
Uma análise mais atenta das políticas sociais na Alemanha revela características que podem enriquecer nossa discussão no Brasil. O Bürgergeld, por exemplo, opera segundo uma lógica diferente da nossa: na mesma porta de entrada, combina proteção social e o que podemos chamar de “instrumentos de ativação”. Este benefício é a encarnação mais recente de uma longa tradição de políticas sociais baseadas no status de emprego e foi implementado pela coalizão de social-democratas, verdes e liberais que governou o país entre 2021 e o início de 2025. Não se trata de um modelo superior, mas de uma forma particular de organizar a relação Estado-cidadão que vale a pena examinar. A diferença fundamental está na filosofia institucional: enquanto desenvolvemos um sistema centrado na garantia de direitos (com profissionais especializados no cadastramento em programas disponíveis), os alemães estruturaram um arranjo voltado ao desenvolvimento de capacidades individuais.
Instrumentos de uma arquitetura diferente
A configuração do Jobcenter alemão – a porta de entrada dos serviços de apoio – apresenta uma concepção distinta da dos nossos CRAS, que são focados na assistência social. Essa diferença nominal revela uma filosofia: enquanto o CRAS é um centro de referência para uma rede de direitos, o Jobcenter é concebido como um centro de integração para o trabalho e a autonomia. Essa premissa influencia a natureza da interação, buscando transformar o beneficiário de um requerente de serviços em um parceiro na construção de sua própria trajetória.
No coração desse processo está o Integrationsfachkraft (Especialista em Integração), um gestor de caso que acumula papéis que, no desenho institucional brasileiro, costumam ser separados: ele é responsável tanto pela correta administração do benefício financeiro quanto por atuar como um facilitador. Após um diagnóstico que investiga não apenas a renda, mas competências, saúde, contexto familiar e até endividamento, ele co-constrói com o cidadão um plano de desenvolvimento pactuado, o Kooperationsplan. Este não é um formulário de adesão a uma política social, mas um documento flexível que estabelece metas, prazos e responsabilidades mútuas.
O que torna este plano mais do que uma carta de intenções é a autonomia e os instrumentos à disposição do gestor. Ele detém uma “caixa de ferramentas” orçamentária para investir diretamente no indivíduo, com uma margem de discricionariedade para a aplicação de recursos. Para barreiras imediatas, utiliza o Vermittlungsbudget, uma verba flexível para custear desde o transporte para uma entrevista até a tradução de um diploma. Para investimentos de médio prazo, o gestor aciona o Bildungsgutschein (Voucher de Educação) para custear uma capacitação profissional individualizada e alinhada à trajetória de cada cidadão. Para garantir a adesão e valorizar o esforço, há também o Weiterbildungsgeld, um incentivo de 150 euros que se soma ao benefício mensal durante a capacitação. Em outra frente, o gestor pode acionar subsídios salariais (um incentivo financeiro às empresas) para que contratem pessoas com mais dificuldade de reintegração. Essa capacidade de aplicar recursos caso a caso, com soluções que vão do micro ao macro, contrasta com nossa tendência a programas mais padronizados, onde o profissional da ponta atua mais como um elo para serviços predefinidos.
Coordenação federativa: Variedade com padrões
A maioria dos aproximadamente 400 Jobcenters do país opera no modelo de “instituição conjunta” (gemeinsame Einrichtung – gE), uma parceria formal onde a Agência Federal de Emprego (BA) e o município (Kommune) co-gerenciam a unidade. Essa colaboração se reflete diretamente na composição da força de trabalho, que é mista: parte dos funcionários é de servidores federais cedidos pela BA, e parte de servidores municipais. A engenharia financeira por trás disso é precisa e definida por lei: o Governo Federal arca com 85% dos custos administrativos e de pessoal, enquanto o município cobre os 15% restantes. Nessa divisão, o lado federal aporta o marco conceitual e normativo que orienta o atendimento, a infraestrutura de TI e o financiamento dos benefícios, enquanto o município contribui com a gestão de benefícios administrados localmente (como, quando cabível, suplemento de financeiro a custos com moradia e eletricidade), além do encaminhamento e da conexão com sua rede de serviços (centros de treinamento vocacional, creches, centros de integração de imigrantes etc).
Em paralelo ao modelo conjunto, cerca de 100 municípios alemães seguem um caminho distinto como zugelassene kommunale Träger (zkT, ou municípios autorizados), após obterem uma certificação federal para assumir a gestão integral dos Jobcenters. A autonomia buscada aqui não é financeira, mas operacional e estratégica. O objetivo é criar sinergias, integrando de forma mais profunda o atendimento do Jobcenter com outros serviços de competência municipal – como a assistência social (Sozialamt), o apoio à juventude (Jugendamt) e as políticas de habitação -, permitindo uma abordagem mais holística para os desafios locais. Ainda que a força de trabalho seja inteiramente municipal e responda à prefeitura, a operação segue financiada por um orçamento dedicado da União, o que sublinha o princípio da execução local de uma responsabilidade federal.
É justamente essa flexibilidade estrutural que transforma os municípios em laboratórios de inovação em políticas sociais. Em Hamburgo, por exemplo, foram criadas as Jugendberufsagenturen (Agências de Carreira para Jovens), que colocam sob o mesmo teto os profissionais do Jobcenter, da Agência de Emprego e dos serviços de assistência à juventude do município, garantindo que o jovem não se perca em um labirinto burocrático. Cidades como Düsseldorf e Colônia, por sua vez, desenvolveram os Integration Points, balcões únicos (zentrale Anlaufstellen) especializados em acelerar a integração de refugiados, alinhando cursos de língua, reconhecimento de diplomas e inserção profissional em um fluxo único e ágil. Já Wuppertal aposta na Sozialraumorientierung (orientação pelo espaço social), abordagem que organiza políticas e serviços a partir dos espaços de vida reais das pessoas (lugares, rotinas e redes) e que prioriza participação, acessibilidade e direitos desde o início. Com isso, descentraliza o atendimento para pontos e redes de apoio nos bairros, reduz barreiras de acesso e fortalece a participação e a confiança.
O que impede que essa diversidade se transforme em fragmentação é a existência de um framework nacional consistente. Embora a implementação seja local, as ferramentas essenciais, como o Bildungsgutschein ou o Vermittlungsbudget, os sistemas de informação e as metodologias de diagnóstico são padronizados em todo o país. O resultado é um sistema que combina uniformidade de instrumentos com heterogeneidade na execução, permitindo que uma estratégia nacional seja adaptada às vocações e desafios de cada território.
Limites da comparação e lições adaptáveis
A realidade alemã, evidentemente, não pode ser transplantada. Trata-se de um país onde o emprego formal sempre foi a base da cidadania social, uma condição muito distinta do Brasil, com sua alta informalidade estrutural. Além disso, a capacidade de coordenação interinstitucional alemã beneficia-se de décadas de construção de consensos federativos e de uma cultura administrativa específica.
Ainda assim, elementos do modelo alemão podem inspirar a evolução das políticas brasileiras. A ideia de que cada pessoa tenha um plano individualizado de desenvolvimento – construído em parceria e revisado regularmente – é perfeitamente adaptável; não por acaso, organizações da sociedade civil têm atuado junto a governos em modalidades semelhantes, como a organização Gerando Falcões, cujos programas se inspiram nos modelos de poverty graduation, desenvolvidos originalmente em Bangladesh. A disponibilidade de recursos flexíveis para remover barreiras específicas à empregabilidade – um pequeno orçamento que cubra documentos, transporte ou cursos de curta duração – representa uma sofisticação capaz de transformar a qualidade do atendimento às famílias em situação de vulnerabilidade no Brasil. Abordagens semelhantes e mais holísticas têm sido testadas em diferentes países, como o Liberated Method, que emergiu da interação entre governos locais e organizações da sociedade civil na região de Northumbria, no Reino Unido.
Mais importante ainda é a filosofia subjacente: a transição de uma mentalidade que vê o cidadão como portador de direitos para uma que o enxerga como agente de sua própria transformação. Isso não significa reduzir a responsabilidade estatal, mas ampliá-la na direção de criar condições para a autonomia.
O futuro das políticas sociais no Brasil?
O Brasil construiu um sistema robusto de proteção social que merece reconhecimento. A partir dessa base, vale refletir sobre possíveis sofisticações. A experiência alemã sugere algumas direções: formação diferenciada para profissionais de ponta, desenvolvimento de instrumentos de planejamento individualizado, criação de mecanismos flexíveis de apoio e melhoria da coordenação entre políticas setoriais.
Não se trata de copiar arranjos institucionais, mas de observar formas de organização que podem inspirar adaptações locais. O Bürgergeld alemão não é necessariamente “melhor” – é diferente, com características que respondem a contextos específicos. Algumas dessas características, porém, podem ser úteis para enriquecer nossa discussão sobre como combinar proteção social e desenvolvimento de capacidades.
Para o Brasil, a questão central permanece sendo como aperfeiçoar um sistema que já demonstrou sua importância. O Bolsa Família estabeleceu as bases. O próximo movimento é imaginar como construir sobre esses fundamentos, desenvolvendo instrumentos que honrem tanto a proteção imediata quanto o potencial de desenvolvimento de cada cidadão.
A observação das práticas ao redor do mundo nos lembra que há diferentes formas de organizar a relação entre Estado e cidadão no campo das políticas sociais. Conhecê-las pode ampliar nosso repertório de possibilidades para enfrentar os desafios brasileiros.