*Maria Eduarda dos Santos Vargas
Heródoto narra, como símbolo de poder, que Xerxes, rei da Pérsia, ao ver sua ponte sobre o Helesponto ser destruída por uma tempestade, recusou-se a aceitar o limite imposto pela natureza. Em um gesto de fúria e arrogância, ordenou que o mar fosse chicoteado e amaldiçoado. O problema não era a ponte caída, mas a recusa em admitir que até o poder supremo encontra fronteiras. Na tradição grega, esse excesso tem nome: hýbris, a arrogância de quem acredita estar acima de qualquer contenção.
A recente decisão do Supremo Tribunal Federal de suspender dispositivos da Lei do Impeachment que previam o afastamento cautelar de ministros ecoa esse mesmo espírito. Não se trata apenas de uma interpretação jurídica controversa, mas de um ato político-institucional de autoproteção, com consequências profundas para o Estado de Direito. O argumento formal utilizado, é conhecido: permitir o afastamento cautelar de ministros durante o processo de impeachment poderia comprometer o funcionamento regular da Corte e abrir espaço para pressões políticas indevidas. Em nome da estabilidade institucional, a aplicação efetiva da lei passa a ser tratada como uma ameaça ao próprio Judiciário. O problema é que esse raciocínio inverte a lógica republicana ao transformar o controle em risco e a ausência de consequências em virtude.
Por isso, o STF não aboliu o impeachment de ministros, o que seria politicamente insustentável, mas esvaziou o seu núcleo funcional. Retirou do instituto o único elemento que lhe conferia eficácia mínima: o afastamento cautelar durante a apuração. O rito permanece, mas desarmado; o processo existe, mas não constrange. Na prática, a mensagem é clara: os ministros podem até ser julgados, desde que continuem julgando.
É exatamente contra esse tipo de arranjo que James Madison escreveu os Federalist Papers. Eles não foram concebidos para proteger juízes ou autoridades, mas para conter homens investidos de poder. Uma Corte Constitucional que se coloca fora do alcance dos mecanismos de controle previstos pelo próprio sistema deixa de atuar como guardiã da Constituição e passa a se afirmar como sua intérprete soberana e irrecorrível. Isso não é constitucionalismo; é supremacia judicial.
A Constituição não criou ministros vitalícios para que fossem intocáveis, mas para que fossem independentes dentro da lei e não acima dela. O problema mais grave não é o caso concreto, mas o precedente simbólico. Ao redefinir os limites da própria responsabilização, o STF envia uma mensagem inequívoca: os freios e contrapesos são negociáveis quando ameaçam o topo do sistema.
Assim, a pergunta de Juvenal permanece atual: Quis custodiet ipsos custodes? No constitucionalismo normal, a resposta nunca foi “eles mesmos”, porém, para o STF é. Quando um tribunal redefine as regras que o alcançam, passa de guardião das normas a seu beneficiário direto. Na tragédia grega, a hýbris nunca passa impune. O castigo não vem por vingança divina, mas pela ruptura do equilíbrio. O poder que se recusa a reconhecer limites deixa de ser ordem e passa a ser excesso. E quando isso acontece, não é o rei que paga primeiro, é a pólis inteira.
Maria Eduarda Vargas é graduanda em direito pela FMP, assessora da Secretária adjunta da SMAMUS em POA/RS, Diretora de Projetos do Instituto Atlantos, coordenadora do Students for Liberty e membro do Instituto Liberdade.