À época de alta inflação no Brasil era comum se decidirem medidas importantes de política econômica no fim de semana, quando o mercado financeiro estava fechado. No auge da crise financeira internacional, viu-se o mesmo tipo de padrão nos EUA, e agora é a vez da Europa, como aconteceu no último fim de semana com o pacote de ajuda à Irlanda.
Apesar de os detalhes do pacote ainda estarem em negociação, já se conhecem alguns pontos: o valor, cerca de 90 bilhões de euros, e que em troca o governo vai cortar gastos (10 bilhões de euros) e aumentar a carga tributária (5 bilhões de euros), para trazer o deficit público dos 32% do PIB estimados para este ano para 3% do PIB em 2014.
A maior parte do pacote se destina a sanear o sistema bancário irlandês, que, como o islandês, ainda que em escala menor, cresceu demais e com ativos de baixa qualidade, neste caso na esteira de uma bolha imobiliária. Esses recursos devem servir para estatizar os maiores bancos do país, abrindo espaço para renegociar suas dívidas com credores subordinados. O resto do dinheiro financiará o deficit público, enquanto as medidas de ajuste são implementadas.
Esperava-se que o anúncio do pacote acalmasse a situação na Irlanda, ao ampliar o prazo para o país resolver seus problemas, e no resto da Europa, ao reduzir o risco de contágio. Não foi o que se viu, pelo menos no mercado de dívida soberana, em que os juros ficaram estáveis e os derivativos de crédito abriram mais. Há algumas razões para essa reação.
A ajuda financeira compra tempo, mas não resolve os problemas estruturais e, em especial, não garante a solvência dessas dívidas. O caso grego é o mais evidente: com uma dívida que, no melhor dos cenários, vai estabilizar em 121% do PIB, o país teria de gerar um superavit primário de 4% do PIB apenas para manter a dívida estável como proporção do PIB, supondo-se uma alta anual do PIB nominal de 1,6% (projeção do FMI para 2010-2015) e juros de 5% ao ano. Não é uma meta fácil para um país que em 2009 registrou um deficit primário de 7,9% do PIB. O mais provável é que, depois de alguma redução do deficit, a Grécia renegocie sua dívida, reduzindo a taxa de juros e alongando prazos.
Nos demais países da periferia europeia a situação é menos crítica, mas não tranquila. Portugal não experimentou a crise imobiliária da Irlanda, e seus bancos são relativamente sólidos, mas o país tem deficit fiscal elevado (9,3% do PIB em 2009) e que não tem caído, como prometido. Além disso, tem dívida externa elevada, principalmente com a Espanha. Esta, por sua vez, deve aos franceses e alemães.
Com ou sem ajuda, os países da periferia europeia terão de fazer ajustes dolorosos em um prazo exíguo e com um ambiente externo desfavorável. Eles precisam crescer mais para reduzir o custo do ajuste, mas isso é pouco provável. Suas economias devem permanecer estagnadas, o desemprego elevado e a arrecadação tributária contraída, alongando o prazo de ajuste. Em uma situação normal, eles deveriam desvalorizar suas moedas, para aumentar as exportações líquídas, mas a adesão ao euro retirou esse grau de liberdade e a elevada competitividade alemã limita o espaço para enfraquecimento da moeda comum.
Não admira, portanto, que o eleitorado esteja insatisfeito. Portugal está hoje em greve geral, em protesto contra a aprovação de medidas de austeridade fiscal que irão a votação na sexta-feira. Na Irlanda, o partido governante deve mudar no início de 2011. Esse risco de alternância no poder gera incertezas, inclusive a de que o novo governo questione algumas cláusulas. A própria aprovação dos pacotes de ajuda nos países credores, em especial na Alemanha, é incerta.
O mercado já faz as contas de quanto custará socorrer Portugal, cerca de 55 bilhões de euros. É uma soma assimilável, mas não há garantia de que o processo pare aí. Um pacote de ajuda à Espanha, quarta maior economia da área do euro, sairia bem mais caro, 350 bilhões de euros, mais que a soma dos empréstimos à Grécia, Irlanda e, talvez, Portugal. E ainda há preocupação de contágio da Itália.
A complexidade, técnica e política, desse quadro não deve ser menosprezada. A crise da dívida soberana europeia ainda durará alguns anos, até que a região cresça mais rapidamente e/ou se viabilize um calote organizado, ainda que disfarçado, de parte das dívidas. Também será preciso a Alemanha aceitar perder competitividade, de preferência em um processo que não exija dos países da periferia europeia mergulhar numa prolongada deflação.
Fonte: Correio Brasiliense, 24/11/2010
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