A primeira vez que tomei consciência do pito e do psiu como, respectivamente, reprimenda e forma de chamamento tipicamente brasileiras, foi nos Estados Unidos. Estava com o professor Richard Moneygrand no clube da universidade e usei o clássico psiu brasileiro para chamar um garçom o que me valeu um pito de Moneygrand. “Aqui não se chama ninguém deste modo, nem cachorro!” – asseverou-me ele seriamente, numa das poucas vezes que me deu aula de civismo igualitário.
De fato, jamais ouvi alguém ser chamado com um “psiu” na América.
Discorrendo sobre o assunto, Moneygrand ligou o psiu a um estilo de chamamento hierárquico, de um superior para um inferior.
A outra vez que me defrontei com o psiu, foi em Paris. Tinha acabado uma das minhas vias sacras pelos gabinetes dos mestres franceses do momento e, num pequeno bistrô, situado entre a rue des Écoles e o Boulevard Saint-Michel, onde ocorrem, como disse uma ocasião, as verdadeiras mitologias, um companheiro de mesa, bolsista profissional que fazia um interminável doutorado em sociologia e passava todo o tempo falando mal do Brasil, usou o psiu para chamar o garçom que atento, mas aborrecido, nos servia. Até hoje lembro-me dos bufos de ódio do homem que passou um pito, mas um pito em regra, no rapaz.
Liguei um evento ao outro e me dei conta de que só no Brasil os subordinados ouviam e atendiam prontamente, esses nossos inocentes e famigerados psius que se confundiam com pitos. Teste que realizei na primeira oportunidade, pois mesmo em ambientes barulhentos como restaurantes e bares, é provável que o garçom não ouça um chamado convencional, mas escuta de imediato o psiu.
Do mesmo modo, um psiu mais veemente se transforma em pito.
Seriam pito e o psiu sobrevivências da escravidão? Ou formas correntes de comunicação padronizada e intransferível, sinal de sua singularidade e manifestação de um viés hierárquico pouquíssimo discutido, mas tão bem estabelecidos socialmente que basta um “psiu” para convocar um desses nossos abundantes “pisits”, como diz o comediante Renato Aragão quando se refere aos párias e destituídos.
Uma passeio pelos livros mostra a sua antiguidade. John Luccock, comerciante inglês que morou no Rio de Janeiro entre 1808 e 1818, menciona no seu livro, “Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil”, que, quando uma pessoa visitava outra, ela batia palmas a fim de atrair a atenção; e emitia “uma espécie de som sibilante, colocando a língua entre os dentes, como se estivesse a pronunciar as sílabas tchi-uu”. Quatro décadas depois, em 1856, Thomas Ewbank, no seu maravilhoso “A vida no Brasil”, observa: “A maneira como os fregueses chamam os vendedores é digna de nota e de imitação. Saem para a porta ou abrem uma janela e emitem um rápido som, mais ou menos como um xit – algo entre um assobio e a exclamação que se usa para espantar galinhas. É estranho – complementa – que tal chamado possa ser ouvido a grande distância. E que todos usem esse modo econômico e prático de comunicação.” Essa observação minuciosa que os especialistas brasileiros em Brasil jamais realizaram, retorna numa pequena passagem do famoso capítulo X de “Sobrados e Mocambos”, de Gilberto Freyre, como o modo tradicional de chamar escravos de ganho.
Sabemos que o psiu é vizinho e pode ser confundido com uma reprimenda, imprópria para ser aplicado a um superior. Prova isso a reação do ministro do Supremo Carlos Alberto Direito que, conforme li no GLOBO (4-11-07), teria registrado queixa contra um funcionário do Superior Tribunal de Justiça, do qual era magistrado, quando o subordinado chamou sua atenção com um indigno e habitual psiu. Neste caso, o psiu se confunde ao pito trazendo à tona o viés aristocrático do sistema, todo ele marcado por uma alta consciência de posição. Como um último exemplo, cabe mencionar o pito que o chefe supremo da nação, Lula, passou nos ministros da Agricultura e Meio Ambiente quando eles exprimiam suas discordâncias sobre temas de difícil resolução.
O psiu e o pito são sinais de que uma pessoa mais poderosa (ou maior) engloba, contém (ou, em linguagem chula, come) a inferior ou subordinada; ou seja: tem a capacidade de situá-la debaixo de sua personalidade social. Esses pequenos gestos provam alguns dos meus argumentos, segundo os quais o Brasil ama tanto a igualdade e a democracia que rejeita psius quanto esses pitos e psius que requerem muito mais do que populismo amoral e ideologia obsoleta para serem domesticados.
Pois no fundo eles permitem manter a autoridade pela autoridade, sem explicações, justificativas ou até mesmo o que se deseja. Haveria um modo mais rápido e eficiente de fazer alguém ouvir e calar do que um psiu?
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