Há anos acompanho os dramas das contas públicas brasileiras. Entra ano e sai ano, pouco muda. Primeiro vêm as pressões por reformas tributárias. Quanto mais ambiciosas e, portanto, mais geradoras de conflitos e incertezas, menores as chances de emplacarem. E, dado o alto risco de perda de arrecadação, como fazê-las sem antes mexer no gasto? Nesse sentido, não é má a ideia de ir desonerando a folha de pagamento gradualmente, testando o risco de uma eventual perda de receita.
Vendo o anúncio de mais um contingenciamento do orçamento, surpreendo-me, primeiro, com as expectativas que se criaram em relação aos cortes que seriam mostrados à sociedade. Como tenho dito repetidas vezes, existe, de fato, um modelo de crescimento de gastos públicos correntes em curso, com origem na Carta de 1988. Por isso o gasto é tão rígido, e não é de uma hora para a outra que se verão os ansiados cortes. Passados tantos anos de sua implementação, é preciso antes rever e ajustar esse modelo. Lembram-se de quando nossa presidente, então ministra, rejeitou a proposta de corte progressivo da taxa de crescimento dos gastos há alguns anos? Perguntou aos interlocutores algo como se já tinham combinado com os russos. Lá já sabia que, sem uma grande articulação política, não daria para anunciar algo que afetasse para valer os sagrados gastos federais correntes. Nem o projeto que limita o crescimento dos gastos de pessoal, enviado junto com o PAC I, consegue até hoje andar no Congresso.
Agora mesmo o governo está penando com as lideranças sindicais que, mesmo sendo tradicionais aliados políticos, querem aumentar, absurdamente, de 27 milhões para 30 milhões de pagamentos de um salário mínimo que a União faz.
Ou seja, mesmo sem acompanhar a aprovação do orçamento deste ano, é de se prever que, neste contingenciamento, dificilmente serão anunciados cortes relevantes em relação ao que foi executado no ano passado, pois não há qualquer anúncio de ajuste do modelo de crescimento dos gastos em curso.
Outra constatação curiosa é sobre o baixo grau de percepção daquilo que o orçamento público brasileiro verdadeiramente significa. Por mais que se repita isso, as pessoas não veem que, no Brasil, o orçamento não é impositivo. Isso induz o Congresso a inchar o orçamento, prometendo mundos e fundos, dizendo que só não sai se o Executivo não quiser. E o Executivo Federal, a cortar qualquer excesso que detecte na lei orçamentária, por meio de um mero decreto presidencial. É isso exatamente o que costuma significar o tal contingenciamento: um mero corte de intenções exageradas de gasto, podendo, inclusive, implicar aumento em relação à execução do ano precedente.
A próxima constatação relevante refere-se à dificuldade de se entender por que é preciso aumentar o superávit primário (excedente de receita antes de pagar parte do serviço da dívida), especialmente via corte de gastos. Sem entender isso, como “peitar”o modelo de aumento dos gastos, tão caro aos políticos?
Até pouco tempo atrás, o principal motivo era o controle da dívida pública, pois esta crescia a perder de vista. Sem pagar uma parte relevante do seu serviço, temia-se uma explosão e posterior calote. Nos choques intermitentes, a taxa de juros subia muito para conter a fuga de dólares e os efeitos colaterais indesejáveis sobre a inflação. Logo, logo, a economia desabava.
Com a dívida sob relativo controle e o menor risco da sequência de eventos acima descrita, o gasto rígido e em permanente ascensão pressiona a demanda agregada da economia, criando um ambiente desfavorável à absorção de choques de preços (como o das commodities, do momento atual). Fica, então, a difícil escolha que a classe política precisa entender com clareza. Flexibiliza-se o gasto e se o contém quando a inflação acelera ou o Banco Central tem de subir a taxa de juros para conter a demanda privada, especialmente a de investimento (o que é pior, pois compromete o crescimento futuro da economia).
Os constituintes de 1988 queriam resgatar a “dívida social” supostamente herdada das fases anteriores por meio do aumento de gastos com previdência e assistência social. As forças corporativas de plantão conseguiram acabar com a contratação via CLT no setor público, trazendo estabilidade no emprego e aposentadoria integral para todos. Um óbvio absurdo, ainda hoje esperando correção.
Diante disso, o gasto federal é hoje muito mais alto, super-rígido e ineficiente (pois faz-se pouco com muito dinheiro). Se somarmos previdência, assistência, pessoal, saúde e educação, chega-se a 86% do gasto total. Investimento leva apenas 6%, no final de tudo. Não é por outro motivo o estado lastimável de nossa infraestrutura de transportes. Ou seja, é preciso ajustar o modelo para subir menos os juros e recuperar os investimentos do ministério de maior peso no total, o dos Transportes. (Sugiro a leitura do trabalho que coordenei sobre como e por que ajustar os gastos. Clique aqui para ter acesso)
Fonte: O Estado de S. Paulo, 14/02/2011
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