Chego de Lisboa no dia da tragédia de Realengo. Percebi a dor contida nos regressos. Entre os indígenas com quem convivi, chora-se sinceramente nas chegadas, não nas despedidas. Nós, seguidores da fórmula francesa com pretensão universal, supomos que partir é morrer um pouco; eles, seguidores de uma outra cartilha, dizem que as cheganças doem mais do que as partidas. A atitude traduz a complexidade dos gestos marcantes que trazem dentro de si a primeira ou a última vez. Experimentamos isso nas grandes viagens. Mais das vezes, entretanto, escondemos a densidade dos relacionamentos que são todos perigosos, sagrados, efêmeros, raivosos, amorosos, ressentidos (ele podia ter me elogiado…; ela podia ter me dado mais um beijo; eu deveria ter pedido desculpas…) em despedidas e saudações casuais que disfarçam a nossa incrível capacidade para amar, que nada mais é do que o fruto de nossa dependência dos outros e da sociedade na qual nascemos e que nos faz o que somos. Um amigo íntimo saiu de casa pela manhã e sequer falou com o filho mais velho para, à noite, depois da missa de sétimo dia do seu mais importante professor e mentor, velar o seu corpo no cemitério próximo de sua morada. Patética e pacientemente ele ajudou sua mulher a enfeitar o cadáver daquele homem alto, e a seus olhos indestrutível, com flores. As flores do bem e do mal que sinalizavam o rompimento para sempre do círculo da família que ele havia construído com tanto desvelo.
Quem pode imaginar que um “até logo” pode ser um “a-deus”? Um até Deus que, como supremo englobador de tudo, um dia vai nos reunir num grato e necessário esquecimento. E então viramos mais uma estrela a brilhar para o pastor que na sua busca de rumo vai nos ressuscitar com o seu olhar.
Eu esperava que minha chegada fosse marcada pela dor de sempre – essa dor disfarçada nas preocupações banais que vão das rotinas caseiras às contas pagas ou esquecidas. Essa dor que para nós, crentes na autonomia individual e na liberdade de escolher, disfarça o fato de que somos um pedaço dentro de um mosaico. É só quando nos separamos que nos damos conta de como somos igualmente feitos de um todo que não inventamos, que existia antes do nosso nascimento e que vai continuar sem a nossa presença. Nas partidas somos um azulejo que sai da moldura; nas chegadas, voltamos a nos encaixar e é esse reencontro da parte com o todo (que viveu sem nós) que emociona e ajuda a compreender o choro como convenção de regresso, tal como somos obrigados a lamentar, tendo as lágrimas como prova de sentimento e sinceridade, os adeuses.
A dor das chegadas fica por conta daquilo que não sabíamos e que, em certos lugares, como o Brasil, é tomado como uma ofensa por termos viajado e, individualizados, dispensarmos a presença dos próximos, “perdendo” o que se passou na nossa ausência. Ora, essa perda das coisas que não testemunhamos – prova cabal de finitude – é um dos motivos do eterno sofrimento humano. Sejamos, porém, mais precisos: choramos também e ainda com mais força porque estávamos presentes e nada pudemos fazer; tanto quanto choramos porque não estávamos presentes quando teríamos a obrigação de estar.
É o que acontece quando somos premiados com essas loterias de infortúnio que fabricam perdas intraduzíveis e, no entanto, produzem ganhos extraordinários. O que tirar dessa tragédia de Realengo que nega veementemente a nossa crença na razão, na utilidade, no determinismo e no progresso, senão uma sabedoria da aceitação de que somos parte de um todo que, no entanto e de quando em vez, também se movimenta contra nós? Uma totalidade que é nossa e se deixava entender com relativa precisão, mas que tem segredos maiores do que as que separam o céu da Terra, como dizia o bardo inglês. Há, como inventou Machado de Assis, um Igreja de Deus e uma outra do Diabo, ambas sistematicamente negadas pela ingratidão humana escondida em cada um de nós. Não devemos matar, mas matamos por dinheiro e, sobretudo, por valores e pela pátria. Moisés, a quem o nosso Deus único deu as regras de ouro da vida e da morte, pertencia a um povo eleito.
Toda eleição esconde um fato doloroso: cumprimos as regras e, no entanto, sofremos mais daqueles que praticam o mal e vivem felizes em nossa volta. Por que aconteceu comigo e não com os outros? Eis a questão revelada nas chegadas e partidas. Apesar de toda ciência, não sabemos tudo. Eis o fato com o qual temos de conviver. E por isso choramos, rezamos e nos amamos ainda mais. Com a força e a inocência dos anjos, com a maldade inútil dos ressentidos e dos loucos que matam desumanamente em nome da pureza e, assim fazendo, reacendem a nossa humanidade. A dor das chegadas e partidas é o limite. Somos, acima de tudo, humanos e, quando não há o que fazer, surge o humano do humano: a pureza das almas. O absurdo de uma tragédia sem razão faz brilhar este mundo feito de lágrimas e de fel.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 13/04/2011
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