O problema da segurança pública no Brasil é gravíssimo. E não será resolvido com ações isoladas, mesmo quando expressivas e importantes. É preciso lancetar o tumor, raspá-lo, limpá-lo. É necessário chegar às raízes da doença. Só assim os homens de bem que compõem as fileiras das polícias não serão confundidos com marginais e psicopatas. Só assim o poder do narcotráfico não será substituído pela prepotência criminosa das milícias. O assustador crescimento da criminalidade é a ponta do iceberg de uma distorção mais profunda: a corrupção generalizada, a frequente falta de critérios de seleção para o ingresso nos quadros, os baixos salários e a desmotivação dos bons policiais.
Os policiais do Estado de São Paulo, por exemplo, têm ocupado as nossas manchetes. Com boas e más notícias. A melhor delas, de longe, é o duro combate à corrupção travado pelo secretário de Segurança Pública, Antonio Ferreira Pinto, com respaldo do governador Geraldo Alckmin. Responsável por afastar 200 policiais do Departamento de Investigações sobre Narcóticos (Denarc) e pela investigação sobre fraudes no Departamento Estadual de Trânsito (Detran), que envolveram 162 delegados, Ferreira Pinto sofreu uma incrível retaliação da banda podre da polícia.
Imagens de um encontro do secretário com um repórter do jornal Folha de S.Paulo num shopping paulista foram parar em blogs de policiais. Segundo Marcelo Godoy, repórter do Estado, num desses sites, ligado a um delegado de polícia, o ex-delegado Paulo Sérgio Oppido Fleury – demitido por Ferreira Pinto em 2010 sob a acusação de desviar mercadorias – ameaçava divulgar o vídeo antes de ele se tornar público. O objetivo da espionagem era jogar o governador Geraldo Alckmin contra o secretário, acusando Ferreira Pinto de ser o responsável pela divulgação de informações contra o sociólogo Túlio Kahn, ex-coordenador de estatísticas da Secretaria da Segurança. Sites ligados a policiais civis afirmavam que Ferreira Pinto queria atingir seu colega de secretariado Saulo de Castro Abreu Filho, titular de Transportes, a quem Kahn seria ligado. Castro foi titular da Segurança entre 2002 e 2006. Em sua gestão, três dos suspeitos de envolvimento na espionagem contra o atual secretário faziam parte da cúpula da Polícia Civil.
O secretário Ferreira Pinto não nega que se tenha encontrado com o jornalista da Folha. Mas disse ao repórter Marcelo Godoy que o objeto da conversa fora o recente caso de uma escrivã despida numa revista por policiais. O abuso provocou a queda da cúpula da Corregedoria da Polícia Civil.
O escândalo de espionagem contra o secretário de Segurança Pública derrubou um dos mais importantes delegados da cúpula da Polícia Civil: Marco Antonio Desgualdo. Ex-delegado-geral, ele comandava desde 2009 o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa. Foi flagrado entre os homens que foram ao shopping obter, por meio de suposta fraude, a fita do encontro que Ferreira Pinto teve com o jornalista. Além de Desgualdo, outros dois delegados de classe especial são suspeitos no episódio do shopping: o ex-diretor do Detran Ivaney Cayres de Souza e o ex-diretor do Denarc Everardo Tanganelli. Impressionante!
A criminosa rede de intrigas, no entanto, foi desfeita, graças ao firme apoio que o secretário recebeu do governador. Alckmin é o grande avalista da operação de limpeza da Polícia Civil de São Paulo. E o Estado, felizmente, conta com um secretário de Segurança íntegro e obstinado no combate à corrupção. É, sem dúvida, uma boa notícia.
Mas se o combate à corrupção é essencial, a motivação dos bons policiais não pode ser descurada. A polícia de São Paulo não está bem remunerada. É um fato. O rigor com gastos públicos, saudável e necessário, não pode deixar de lado algo fundamental: é preciso dar salário digno aos profissionais que desempenham tarefas delicadas e estratégicas. Uma simples batida de olhos na tabela de vencimentos da Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (Adpesp) causa incontornável constrangimento. No ranking dos salários das polícias brasileiras, São Paulo está atrás de Sergipe, Alagoas, Tocantins, Piauí, Maranhão…
O salário de um delegado da polícia paulista com mais de dez anos de trabalho, duas promoções e dois quinquênios é de R$ 6,5 mil (valor bruto). Com os descontos cai para menos de R$ 5 mil. O salário de um investigador de polícia gira em torno de R$ 2,5 mil. Com os descontos registrados no holerite termina recebendo R$ 2 mil. Assim não dá.
Acrescente-se a defasagem existente entre o salário dos policiais e o de outras carreiras. Um agente da Polícia Federal, em meados da carreira, cargo que equivale ao de um investigador de polícia, ganha bem mais que um delegado de polícia de São Paulo.
O combate à banda podre da polícia merece o apoio de todos. Mas a valorização dos bons policiais, com salários justos, reconhecimento e adequada jornada de trabalho, é um imperativo. Impõe-se, por exemplo, uma correta distribuição de policiais na burocracia do dia a dia. Não está certo que alguns delegados façam até 18 plantões num só mês, enquanto outros fazem muito pouco. Não parece razoável que uma delegada cuidasse da biblioteca da Delegacia-Geral, enquanto em alguns distritos, e não são poucos, seus colegas estão submetidos a escalas desumanas de trabalho. Tais distorções, contudo, estão sendo superadas. É importante, pois conspiram contra a qualidade do trabalho policial.
Reconheço o esforço do governo para combater o crime e controlar a violência. Mas é preciso mostrar também os desvios. Afinal, um governo que quer acertar só se pode beneficiar das críticas fundamentadas.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 18/04/2011
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