Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo…
O Brasil politicando, Nossa!
A poesia morrendo…
O sol tão claro lá fora,
O sol tão claro,
Esmeralda, E em minhalma – anoitecendo!
Manuel Bandeira
Eu tomei um susto quando descobri que a “rua”, lugar perigoso e esculhambado justamente porque sendo de todos, não pertencia a ninguém, era um “espaço público”. Tratava-se de um domínio “republicano” como as pessoas falavam enchendo a boca e se benzendo com contrição cívica. Como ter um lugar sem um dono numa sociedade onde tudo – céu, mar, matas, artes, ciências, literatura, e até mesmo o inferno – tem amos, chefes, caciques, comandantes e patrões?
Como é que pode haver algo sem patrão numa sociedade cuja fundação se baseia na crença de que nada existe em liberdade e que o real é construído por meio de uma relação? Pois entre nós, você é um mero cavalinho até dizer de quem é filho, irmão ou amigo; qual o seu posicionamento e, hoje em dia, partido; e onde estava em 64, 68; ou se, em 69, você já fazia um 69. Então, devidamente relacionado, você imediatamente vira cavalão.
Nesse sistema que chamei de “relacional” ou “hierarquizante”, essa rua que não era minha nem de ninguém seria uma utopia. Bem diferente da Pasárgada do nosso magistral Manuel Bandeira, pois lá, como amigos do rei (e no papel de cavalões), teremos a mulher desejada na cama escolhida. Ou seja, no nosso paraíso social, valem os elos que temos com os “caras”, os que mandam e comem porque estar no poder é ser dono, é ter a capacidade de englobamento.
E eis que hoje, republicanos e soi disant democratas, com uma economia nos eixos e moeda estável; com uma rede de mecanismos que testemunham a transparência e obrigam a honestidade, pois as câmeras e os extratos dos bancos e dos computadores não mentem, somos obrigados a assistir à luta diuturna daqueles que, controlando o Estado, pensam que – após o rito de posse – são mesmo senhores e patrões da administração pública e do Brasil.
Num sistema que até anteontem pessoas possuíam coisas, objetos e pessoas; pois os maridos eram donos de suas mulheres, eufemística e significativamente chamadas de “patroas”; os brancos ricos tinham a posse dos escravos; os patriarcas possuíam a família e engenhos; os imperadores, os barões, os letrados e os políticos possuíam o poder e o país; os advogados, a justiça e as leis; os padres, a religião; os professores e intelectuais, a ciência, a literatura e a sabedora; onde encontrar algo sem dono? Como ter um “espaço (re)publicano” se o público era o baldio, o que estava ao deus-dará, o que estava à espera de alguma apropriação por algum salvador da pátria? Como ter a praça livre de dono se ela era do “povo”, como a praia era dos playboys; a noite, dos boêmios/ o novo-richismo, dos grã-finos; e a rua, dos automóveis?
Como imaginar um ente livre num universo agrilhoado pelos elos que prendiam o senhor ao escravo e que havia sido engendrado por um Tratado de Tordesilhas? Um acordo que suprimia fronteiras e zonas criativas, pois assegurava a posse do mundo conhecido, com a devida legitimidade divina e católica, ao reino que o “descobriu”?
Convenhamos que não é coisa simples esse palavreado republicano fácil de dizer, no qual todos são teoricamente livres e, eis o nó de porco, iguais. Iguais perante a lei que a todos engloba democraticamente e assim constrói esses espaços públicos que, começando com o país como Estado nacional, tem um território soberano que pertence a todos os seus cidadãos. Essa consciência de uma igualdade geral é um dos sinais dos tempos que vivemos.
Ela pipoca aqui e ali, mas a julgar pela conduta dos membros da administração federal, o espaço público tem dono e patrão. Ele é, em geral, e normalmente apropriado pelos poderes que usam seus recursos para aristocratizar e enriquecer os seus “donos”. Como, então, na rua, na praça, na calçada e no corredor não imitar esse padrão que confunde o uso temporário com a posse permanente pelo usuário, pelo eleito ou pelo nomeado? Como sair dessa desgraçada concepção de que o público, não sendo de todos, pode ser depredado, depravado e abandonado aos marginais?
Eu não sei o que você pensa disso, caro leitor. De minha parte, esse viver livre e igualitariamente (sem patrões, donos, senhores ou salvadores) é um ponto crítico no que diz respeito à vida social de qualquer democracia.
Pois quanto mais vamos ficando igualitários e, queiramos ou não, liberais, mais tomamos consciência dos direitos e, mais recentemente, dos deveres que devemos observar quando entramos em algum espaço público. Se neles entramos para usurpar, como ocorre com os invasores das terras indígenas; ou com os moleques que tomam a praça para suas gangues; ou como os políticos canalhas para transformar cargos públicos em postos de enriquecimento e aristocratização sociopolítica, então destruímos e tornamos ilegítimos a igualdade como valor. Mas se levarmos essa vivência a sério, mesmo com suas imensas dificuldades nesta sociedade tão marcadamente escravocrata, quem sabe iremos nos orgulhar de saber o que significa a palavra “república” em toda a sua complexa e profunda extensão?
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