Há 45 anos, no Cairo, veio à luz o manifesto da jihad contemporânea. Escrito no cárcere, por Sayyd Qutb, líder da Irmandade Muçulmana, Milestones profetizava: “A liderança do homem ocidental no mundo humano está em declínio, não porque a civilização ocidental esteja em bancarrota material ou tenha perdido sua força econômica ou militar, mas porque a ordem ocidental já cumpriu sua parte, e não mais possui aquele acervo de valores que lhe deu sua predominância. Chegou a vez do Islã.” Há uma semana, no mesmo Cairo, Barack Obama contestou Qutb. Não por meio de uma contraposição entre o Ocidente e o Islã, mas pela evocação de valores universais, que são patrimônios humanos. O discurso presidencial enfureceu tanto os arautos jihadistas do terror global quanto os intelectuais neoconservadores que moldaram a política mundial de George W. Bush.
Qutb morreu na forca em 1966, condenado injustamente pelo regime nacionalista de Gamal Abdel Nasser, mas seu irmão Muhammad exilou-se na Arábia Saudita e, com outros líderes egípcios foragidos, difundiu a bandeira do jihadismo entre a elite saudita. Em 1979, 1.500 militantes jihadistas tomaram a Mesquita de Meca, deflagrando a guerra civil que prossegue até hoje no mundo do Islã. Obama falou para os muçulmanos, concitando-os a voltar as costas para os fanáticos e resgatar o Islã das mãos dos apóstatas. A sua “guerra ao terror” é travada com palavras, mais que com mísseis.
“Enquanto a nossa relação for definida por nossas diferenças, entregaremos o poder àqueles que semeiam o ódio ao invés da paz e promovem o conflito no lugar da cooperação (…). Esse ciclo de suspeita e discórdia precisa terminar.” A Al-Qaeda emanou da dissidência jihadista do Islã, que assumiu os contornos de um exército de fiéis nos campos de batalha do Afeganistão durante a guerra contra a ocupação soviética. Os herdeiros de Qutb, reunidos na rede de Osama bin Laden, almejam a restauração do califado islâmico e a imposição da Lei do Livro sobre todos os muçulmanos. Obama está dizendo que essa invocação do Islã literal não é apenas uma negação da modernidade, mas uma negação do próprio Islã.
O presidente americano falou na Universidade do Cairo, fundada pelo califado fatimíada no século 10, associada à Mesquita Al-Azhar e consagrada à propagação da cultura islâmica. Obama exaltou a civilização islâmica, “que carregou a tocha do conhecimento, pavimentando o caminho para a Renascença europeia e as Luzes”, pela sua capacidade de inovação nos campos da álgebra, dos instrumentos de navegação, da tipografia, da medicina, da arquitetura. Ele reconheceu os “conflitos e guerras religiosas” entre o Ocidente e o Islã, mas rejeitou a imagem de dois monólitos contraditórios, acocorados nos casulos de dogmas inconciliáveis. O Islã está no Ocidente e o Ocidente está no Islã – eis a mensagem do discurso programático que explode como uma bomba nas fortalezas ideológicas encravadas nos dois lados de uma fronteira ilusória.
“EUA e Islã não são exclusivos e não precisam ser rivais. Em vez disso, eles se intersectam e partilham princípios comuns – princípios de justiça e progresso, tolerância e dignidade de todos seres humanos.” Obama falou para os muçulmanos, mas também para os ocidentais, mirando especialmente os orientalistas que formularam a doutrina da guerra de civilizações. Bernard Lewis, o príncipe dos orientalistas, definiu cedo um ponto de vista inegociável: investigando os arquivos otomanos, convenceu-se de que a cultura muçulmana contém um pecado original, expresso como resistência irremovível à mudança. Depois, fiel à chave interpretativa, cunhou a expressão “choque de civilizações” e sustentou que Islã e Ocidente colidem desde o século 7º, quando se ergueu o primeiro califado. Na sua perspectiva, Islã e Ocidente definem-se por culturas inapelavelmente separadas – e a salvação do primeiro depende da eventual negação de sua “essência”, pela adoção dos valores do segundo. Recusando as categorias fixas de Lewis, Obama liberta os EUA da armadilha cruzadista que desnorteou sua política mundial depois do 11 de setembro de 2001.
Terror é um termo abrangente, que funcionou como sucedâneo para fundamentalismo islâmico na “guerra ao terror” de Bush. A história da grande perturbação dos espíritos aberta no Islã pelo manifesto de Qutb é mais complexa e matizada. A Irmandade Muçulmana cindiu-se em 1987. A minoria juntou-se a Osama bin Laden, originando a rede da jihad global. A maioria renunciou à violência, escolheu o caminho da luta política contra a ditadura pró-ocidental egípcia e enfrenta até hoje uma repressão implacável. Da costela da Irmandade surgiu o Hamas palestino, um partido fundamentalista de massas que se engajou no terror contra Israel. Contudo, por mais ignóbeis que sejam seus atentados, o Hamas rejeitou associar-se à Al-Qaeda e à doutrina da restauração do califado. Sob o influxo de Lewis, Bush reuniu sob um rótulo único as distintas expressões do fundamentalismo islâmico. Obama decidiu separá-las.
No Cairo, o presidente reiterou que o elo entre os EUA e Israel é “inquebrável”, condenou o antissemitismo e crismou como “odiosa” a negação do Holocausto. Mas reconheceu a dor dos palestinos, as “humilhações cotidianas” infligidas pela ocupação e a “aspiração legítima” a um Estado soberano. Num mesmo trecho, exigiu o congelamento dos assentamentos israelenses e a renúncia dos palestinos à violência, pois “lançar foguetes sobre crianças que dormem não é sinal de coragem nem de poder”. Desafiando um tabu, dirigiu-se ao Hamas como um componente da nação palestina, para conclamá-lo a reconhecer o direito de Israel existir. Trata-se de um programa intolerável para o jihadismo muçulmano, os neoconservadores americanos e o atual governo israelense. Não é um discurso protocolar, mas um novo começo para a política mundial dos EUA.
(O Estado de SP – 11/06/2009)
O artigo é bom. Difícil é acreditar na sinceridade do comunista e muçulmano Obama.
“Da costela da Irmandade surgiu o Hamas palestino, um partido fundamentalista de massas que se engajou no terror contra Israel.”
Lamentável essa simplificação sobre o Hamás. Ele se esqueceu que o Hamás surgiu, como uma reação à política nada ética (para ser bem bonzinho) do estado de Israel em relação aos palestinos, e, também como uma reação à ineficiência e corrupção da Autoridade Nacional Palestina.