Segundo especulou um conceituado jornal paulista, a Desvinculação de Receitas da União (DRU), que torna de uso livre parcela de 20% de grande parte das receitas da União, teria sido desenvolvida “pela tecnocracia nacional a partir de estudos do Fundo Monetário Internacional (FMI)”, mas perdeu o sentido original. Só se justificaria sua prorrogação na hipótese maquiavélica, formulada por um crítico do governo, de “que está no horizonte a recriação da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) ou o aumento de outra contribuição”. Se não, por que desvincular 20% do orçamento social, se algo parecido com essa parcela retornaria depois, pelo aumento dos gastos, sob a forma de “recursos livres”? A não ser que o governo estivesse pensando em adicionar nova receita – da qual, então, se liberaria parcela adicional de 20% de seus ingressos, para qualquer uso.
Com muitos anos de vivência e estudos na área, devo dizer, primeiro, que o FMI não teve nada que ver com o assunto. A especulação em torno da DRU é de quem não viveu intramuros o processo de sua criação.
Às vésperas do lançamento do Plano Real, fui eu quem desenvolveu a ideia de um mecanismo de desvinculação de receitas, chamado à época de “fundo de estabilização”. Em seguida, apresentei-a ao então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, que a defendeu perante o Executivo e o Congresso Nacional.
Além disso, não consigo comprar a teoria conspiratória de que o governo quer prorrogar a DRU para depois recriar a CPMF (ou algo do tipo) e “ganhar” uma receita extra de 20% do que entrar a mais. Por vários motivos, mas um deles, e o governo sabe disso, é que cabe primeiro “combinar com os russos” – a sociedade brasileira dificilmente engolirá novo aumento expressivo da carga tributária sem estarmos à beira do precipício (algo hoje completamente descartado).
Um senador, então aliado do governo, me estimulou, na presença de amigo comum, a encontrar uma solução para o seguinte problema que tirava o sono de FHC. Sua equipe dizia que o Plano Real estava pronto, mas faltava um sinal forte na área fiscal, para não repetir o fracasso dos planos de estabilização anteriores.
Daí imaginei que o sinal teria de ser a demonstração de que o orçamento pós-plano, superenrijecido pelas “vinculações de receita”, não mais deveria depender da inflação elevada para se ajustar à realidade das receitas escassas. Se não, logo a inflação precisaria voltar.
Antes, as majoritárias receitas “vinculadas” eram distribuídas às várias áreas cativas no Orçamento, e sobrava pouco para as demais finalidades, inclusive o pagamento de parcela do serviço da dívida (superávit primário). Para aumentar essa sobra, o Tesouro segurava a liberação de certos gastos até o segundo semestre, e a corrosão inflacionária fazia o trabalho de cortar o valor real de certos gastos.
Diante da óbvia inviabilidade política de mexer nas vinculações de receitas constitucionais individualmente, sugeri um mecanismo provisório que “desvinculasse” um porcentual fixo de todas, o maior possível, partindo de que o efeito líquido seria positivo. Nessas condições, facilitaria a aprovação no Congresso. E na sua abrangência inicial seria possível redistribuir receitas efetivamente para finalidades que, no processo anterior, só poderiam ser contempladas com a ajuda da inflação.
Sabia que, aos poucos, os lobbies setoriais tentariam fugir da aplicação da DRU, e que receitas antes desvinculáveis poderiam desaparecer, como no caso da CPMF. Por isso, os governos deveriam, a seguir, se empenhar numa solução permanente, algo que até agora não ocorreu.
Mesmo sem os ganhos líquidos de receita com a DRU, previstos na justificativa do governo, fico imaginando a dúvida que deve ter surgido na reunião de cúpula que decidiu pelo empenho na aprovação da Desvinculação. E se, em momento de crise internacional, os mercados “lessem” o abandono da DRU pelo governo como mais um sinal de desarranjo fiscal, diante das iniciativas de “contabilidade criativa” não muito bem recebidas nos últimos anos?
O mesmo raciocínio vale para o atual empenho governamental na aprovação da previdência complementar dos servidores, que resultou originalmente também de uma sugestão minha, introduzida com a ajuda de um ministro tucano, no dia da votação da Emenda n.º 20/1998 na CCR do Senado, que aprovou a reforma previdenciária do governo FHC, assunto para outro artigo.
Por maior que seja a oposição dos sindicatos de servidores (e do próprio Tesouro, pelos gastos adicionais), o governo sabe quão importante será o sinal, para efeito do equilíbrio fiscal de longo prazo, da aprovação da nova sistemática.
Por último, como justificar o veto de Lula à extinção do “fator previdenciário”, tão defendida pelos mesmos sindicatos? Lula sabia (e Dilma sabe hoje) que o sinal seria péssimo, mesmo que o “fator” fosse substituído por algo parecido. Seria outro sinal de mudança da antiga postura rumo ao equilíbrio fiscal de longo prazo.
Em suma, o governo está certo em evitar a desfiguração das conquistas da área fiscal dos últimos anos. Falta apenas arregaçar as mangas e completar as reformas.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 14/11/2011
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