“Seu” Jacques, conhecido da nossa família no interior de São Paulo, dono de loja de artigos variados, aplicava todas as suas economias em dólar. Dólar mesmo, verdinhas, que guardava em casa. Isso faz muito tempo, dos anos 50 para os 60.
Quando nós, os mais jovens, começamos a achar que entendíamos de política e economia, tentamos convencer “seu” Jacques de que havia outras maneiras de investir dinheiro. Ações, por exemplo, aproveitando o crescimento do país.
Sim, admitíamos que ele, imigrante que escapara da Rússia em circunstâncias tão dramáticas quanto corajosas, sabia como fora crucial ter uma moeda aceita em qualquer lugar do mundo.
Mas agora, mundo novo, dizíamos, ninguém vai nem sequer pensar em perseguir sua família. “O senhor não precisa mais ter dólares.” Ele dizia entender isso muito bem. Nós é que não estávamos percebendo o ponto correto.
Então, qual seria?
Com sotaque forte, ele simplificava sua teoria: “Conhece alguém que ficou pobre com um monte de papel na mão?”. Desfiava histórias do crash de 29, para arrematar: “E sabe de alguém que ficou pobre com um monte de dólares mão? Nunca”.
Tanto tempo depois, na era do capital financeiro, a teoria continua valendo. Sério.
Reparem, toda vez que algo se complica no ambiente internacional, os investidores correm para aplicar em títulos do governo americano. É papel, certo, “seu” Jacques não gostaria, mas vale verdinhas e pode ser trocado a qualquer momento. Ou seja, no apuro, o pessoal corre para o dólar – e os operadores chamam esse movimento de flight to quality, voo para a qualidade, para a moeda que é reconhecida e aceita alegremente da Sibéria ao interior paulista.
Quando o ambiente se acalma, os investidores globais voltam aos chamados mercados de risco – títulos do governo brasileiro, por exemplo, ações na bolsa paulista -, que pagam mais no momento, embora os reais equivalentes não sejam aceitos na Sibéria.
Ficar pobre, na teoria do “seu” Jacques, é ficar sem nada, ter papéis que simplesmente perdem o valor de uma hora para outra. Mais ou menos como ter títulos do governo grego, aqueles que os credores privados serão obrigados a trocar por papéis novos que valem bem menos. O sujeito tinha 100 para receber, vai levar 47, e isso em dez anos. Não ficou propriamente pobre, mas perdeu muito.
A chance de isso acontecer com os títulos do governo americano é zero. Dizem que um dia o capitalismo vai acabar e o dólar vai virar pó. Tudo bem. Mas é preciso ao menos admitir que o último país a ver a morte do mercado serão os EUA, certo?
Por isso, os títulos de dez anos do Tesouro americano pagam menos de 2% ao ano (1,97%, na sexta-feira). Quanto maior a segurança, menor a rentabilidade.
Mas é perder dinheiro. A inflação americana e a mundial são superiores a 2%.
E se você resolver trocar tudo por dólar-dólar, verdinhas na mão, também vai perder dinheiro. A moeda americana está sendo desvalorizada em consequência das ações do Federal Reserve, Fed, o banco central dos EUA. O Fed está simplesmente imprimindo trilhões de dólares para irrigar o crédito e, assim, baratear investimentos e consumo. Tudo dando certo, os consumidores vão às compras, as empresas aplicam para aumentar a produção e os anos de crise e recessão ficam para trás.
Essa enxurrada de dólares barateia a moeda em relação às demais moedas, especialmente as dos emergentes que exportam commodities muito valorizadas e têm feito muito dinheiro nos últimos anos. Suas moedas se valorizam.
O real brasileiro está nessa, mas também o peso colombiano (valorização de quase 8% desde dezembro), o uruguaio, o mexicano, o sol peruano, para ficar apenas na América Latina.
Como há oportunidades de negócios por aqui e como boa parte das reformas macroeconômicas já foi feita, capitais estrangeiros chegam em abundância em toda a América Latina – e mais ainda ao Brasil, que é o grandão nesse jogo.
Vejam a ironia. Nós, que passamos a vida toda sofrendo com a falta de “divisas fortes”, nós, que tivemos várias crises nas contas externas, com uma sequência de calotes, temos abundância de dólares justamente no momento em que a moeda do imperialismo está sendo desvalorizada. E todos os bancos centrais daqui, a começar pelo brasileiro, são obrigados a comprar dólares maciçamente, para impedir uma desvalorização ainda maior.
“Seu” Jacques diria o seguinte: você só perde se trocar os dólares. De fato, em dezembro, com US$ 100 dava para comprar R$ 183. Hoje, R$ 170. Portanto, não troque, fique com as verdinhas, repetiria “seu” Jacques.
Até daria certo, se você estivesse comprando os dólares com excesso de poupança e não precisasse gastá-los.
Simplesmente deixava lá os dólares e, quando toda essa confusão passasse, ganharia com a revalorização.
Ocorre que o governo brasileiro, diferentemente do chinês, compra dólares tomando reais emprestados. Assim, fica devedor em títulos em reais, pagando 11% ao ano; e credor em papéis do Tesouro americano, nos quais recebe menos de 2%.
Uma saída à “seu” Jacques seria a gente abolir o real e passar para o dólar. Ou quem sabe, já antecipando novos tempos, passar para o yuan, eliminando a vantagem que os chineses têm com sua moeda desvalorizada?
Claro, inviável. Foi só por falar.
Então, como ficamos? O governo brasileiro vai comprar mais dólares, vai criar dificuldades para a entrada da moeda americana, mas será como enxugar gelo.
Sendo o problema mundial, seria preciso uma ação global coordenada. Quem faria isso? O G-20 seria uma possibilidade, não fosse o saco de gatos que é.
No tempo do “seu” Jacques era mais fácil.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 27/02/2012
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