São muitas as dimensões ocultas da grande crise contemporânea. A desenfreada especulação imobiliária e os excessos dos financistas americanos foram apenas os fenômenos mais visíveis. O implacável desdobramento dessa crise tem revelado gradualmente suas novas e surpreendentes dimensões.
A demagogia e a irresponsabilidade financeira de uma obsoleta social-democracia europeia perdem agora sua camuflagem – a crise do euro. A onda de empréstimos inadequados disparada pela adoção da moeda continental, derrubando riscos de créditos soberanos sem distinção de fundamentos fiscais, foi apenas a etapa final de uma longa história de abusos orçamentários contra as finanças públicas dos países europeus.
Tanto os europeus sabem disso que, na semana passada, assinaram um acordo que impõe maior disciplina orçamentária para os integrantes da Zona do Euro. Os governos nacionais terão de incluir uma “regra de ouro” em suas Constituições, um teto de 3% para seus deficits fiscais. O pacto de coordenação de políticas fiscais estabelecerá medidas de correção e punição automáticas aos países cujos deficits excederem o limite.
Outra dimensão oculta da crise tem sido a disfuncional atuação dos mais importantes bancos centrais do mundo. Indiferentes aos possíveis efeitos sobre os demais países, o Federal Reserve, dos americanos, e o Banco Central da China manipulam artificialmente preços críticos para a economia mundial, de olho exclusivamente na criação de empregos domésticos.
Os americanos, com suas taxas de juros extraordinariamente baixas por mais de uma década, criam bolhas financeiras em série. Os chineses estimulam suas exportações e roubam empregos em todo o mundo, apelando há muitas décadas para a manipulação cambial. Americanos e chineses, portanto, sempre jogaram dopados na grande competição da economia globalizada.
Quando estouram as bolhas e surge o desemprego em massa, as autoridades eximem-se de responsabilidade – e atribui-se a culpa aos mercados. Bancos centrais que permitiram os excessos, pela regulamentação frouxa, ou mesmo os promoveram e estimularam, com juros muito baixos por tempo demasiadamente longo, surgem agora como os salvadores da pátria.
Mais uma dimensão pouco explorada da crise são seus impactos assimétricos e distributivamente perversos sobre as diversas camadas da população. A verdade é que grupos de interesses financeiros capturam e dirigem as autoridades nas operações sistêmicas de salvamento.
No caso americano, as transferências de recursos públicos para o sistema financeiro em tempos de crise, a pretexto de salvar as economias de mercado de seus próprios excessos, contrastam com a desatenção às execuções de hipotecas de imóveis para as classes de baixa renda e à incapacidade de pagamento de empréstimos tomados por estudantes.
No caso europeu, a explosão da taxa de desemprego entre os mais jovens revela a crueldade e a inadequação das legislações trabalhistas e dos regimes previdenciários que refletem estreitos interesses corporativistas. Os protestos dos jovens contra o “capitalismo” apenas demonstram sua triste ignorância quanto à insensatez, à demagogia, às falsas promessas e ao despreparo de seus antecessores, que lhes deixam agora a herança maldita de suas “conquistas sociais”.
Outra formidável deformação, pela enxurrada de liquidez promovida pelos bancos centrais dos países avançados, é a percepção súbita de enriquecimento nos países emergentes. As receitas de exportações engordam com a explosão dos preços de produtos primários. Ao mesmo tempo, como reclamou Dilma Rousseff a Angela Merkel depois que também o Banco Central Europeu abriu suas comportas, os emergentes são atingidos por um “tsunami de liquidez” em resposta aos diferenciais de taxas de juros e de crescimento. O resultado é a valorização de suas moedas, embalando ilusões de riqueza enquanto destroem a competitividade de suas indústrias.
Uma nova dimensão revelada pelo desdobramento da crise é sua própria reinterpretação intelectual. A percepção da crise em si está mudando. O que dirão os futuros historiadores quando examinarem retrospectivamente as duas últimas décadas? Dirão que se tratou de uma época de “Grande Moderação” como celebravam os economistas? Ou dirão que essa foi na verdade a Era dos Excessos, marcada exatamente pela mais absoluta falta de moderação?
Falta de moderação nos financiamentos imobiliários. Falta de moderação na alavancagem dos bancos. Falta de moderação nos deficits e no endividamento público. E que dizer de bancos centrais enlouquecidos, que põem em risco o regime fiduciário ocidental, abalando a confiança nas moedas e nos governos?
Aqui se explica o paradoxo de os economistas chamarem de Grande Moderação justamente essas duas décadas em que perdiam o juízo políticos, financistas, famílias, embriagando-se todos com o endividamento excessivo. Os economistas celebravam como Grande Moderação seu sucesso no uso dos instrumentos de política monetária e fiscal em obter taxas altas e estáveis de crescimento em meio a taxas baixas e estáveis de inflação. Um mundo livre das grandes flutuações cíclicas, dos booms e das recessões.
Mas poucos perceberam que a redução na amplitude dos ciclos era obtida por doses cada vez mais elevadas de liquidez. Dinheiro barato para créditos temerários. Aumentavam a frequência e a amplitude das oscilações registradas nos instrumentos monetários e creditícios a cada tentativa de abafar as flutuações nas metas de crescimento e inflação. Os bancos centrais injetaram nas veias bancárias mais de US$ 2 trilhões (uma selvagem oscilação nos instrumentos), na desesperada tentativa de manter algum crescimento (“moderando” o ritmo de desaceleração econômica). Cada vez mais drogas – e as dores continuam.
Tornavam-se cada vez mais instáveis os fundamentos, quanto mais garantias anticíclicas os governos ofereciam. A percepção de risco era anestesiada enquanto subia exponencialmente o risco sistêmico. Até a eclosão da crise.
Fonte: revista Época
No Comment! Be the first one.