A vida social é uma medida. Não existe sem classificações, rótulos e categorias. Seus pontos de partida são múltiplos e, eis uma contribuição importante da antropologia social para a chamada civilização ocidental, arbitrários.
Existem sistemas de crença transcendentes, mas sem um ponto de partida exclusivo, tipo: a infraestrutura material é mais “real” que o resto; ou: isso é mais verdadeiro do que aquilo. Seja porque não têm escrita e, consequentemente, livros sagrados, seja porque sua gênese não foi feita por uma só criatura num ato solitário e indecifrável de vontade e onipotência, como o Deus judaico, cristão e islâmico, há muitos costumes, muitas variantes, mas não há fundamentalismo. O que, obviamente, facilita conversões rápidas e aparentemente definitivas.
Essa ausência de base ou fé irrevogável, e de mandamentos, torna complicado ver em algumas sociedades chamadas de simples, primitivas e selvagens algum tipo de “religião”. Donde o elo provável entre fé e exclusão por meio da sacralização de uma versão única. A crença de que, no universo bíblico, somos responsáveis pela separação entre este mundo e o outro, cujas medidas e escalas antes da expulsão do Paraíso eram idênticas, é uma dimensão desta tremenda culpabilidade como a contrapartida da salvação e da escolha. Na maioria das sociedades conhecidas, a medida do universo foi modificada pelos deuses, heróis ou por algum animal. Entre nós, porém, um erro e uma expulsão para um mundo de sofrimento e de morte instituíram essa visão do mundo como sendo feito de coisas certas ou erradas.
Uma jovem antropóloga, de origem lusa, visitava um esplêndido museu naval em Lisboa. Um professor curador local a acompanhava, grave e solícito, comentando com indisfarçável orgulho as mais diversas miniaturas de todos os tipos de embarcações que seu povo havia fabricado, salientando como esses modelos representavam a grande contribuição do seu povo ao conhecimento espacial deste nosso mundo dominado pelas águas. A jovem professora seguia cheia de respeito pela exposição que, na medida certa, revelava as razões que deram a Portugal a primazia dos Descobrimentos Marítimos (e culturais, como acrescentava com um olhar rutilo de altivez o curador) que eram a base desse nosso universo de perspectivas e medidas paralelas, competitivas ou contrárias defendidas, aqui e ali, com tanta indiferença quanto com surpreendente fé ou mortal fundamentalismo.
Na saída, ao apresentar os detalhes técnicos da miniatura de um último navio, peça que, em escala reduzida, promovia o prazer de ser vista como um todo pelos olhos humanos que o navio real devorava, o professor reiterou esse glorioso universo humano feito de escalas e medidas com o seguinte desfecho: “Mas note bem a senhora professora, que está óbvio que todos esses barcos não são do tamanho normal!”
Dizem que ao ouvir o riso de um colega brasileiro, a professora ficou – digamos – fula da vida!
Essas escalas nos remetem a um assunto que, volta e meia, discuto neste espaço: que tamanho deve ter o Estado em relação à sociedade? É mesmo possível ter um Estado tipo Tocantins, com uma previsão estrutural de 35 mil cargos em comissão? Ou seja, um Estado canibal e supostamente atuante, no sentido lulista do termo, capaz de vigiar e “cuidar” de todos os seus cidadãos com um conjunto esmagador de aspones – todos do mesmo partido ou família? Como, eis a contramedida, essa sociedade proveria essa formidável máquina de funcionários públicos que servem primeiro a si próprios e, depois, ao chamado povo que, embora muito pobre, paradoxalmente, paga seus enormes salários e mordomias?
No Livro dos Insultos, num artigo escrito em 1924, intitulado “trabalhar para o governo” (uso a excelente tradução de Ruy Castro), L.H. Mencken fala das monarquias imorais do continente europeu que, entretanto, sabiam lidar exemplarmente com os corruptos, então rotineiros na América, sobretudo no Estado de Nova York. Na sua “abominável Prússia” (que Weber obviamente toma como modelo da dominação burocrática), os funcionários corruptos estavam sujeitos a leis criminais e a tribunais especiais.
Donde, o viés ianque prussiano de estabelecer fianças altíssimas ou de simplesmente suspendê-las e condenar a penas mais duras, quando o flagrado em corrupção é juiz, presidente, governador, senador, policial, ou celebridade já que, em virtude de sua posição e responsabilidade, eles deveriam servir de exemplo para a coletividade da qual se destacam pelo cargo. Nessa medida (ou ética), a honra (pública) do cargo deve contaminar a pessoa e não o contrário, como é o caso do nosso amado Brasil. Na Prússia – Deus nos livre! – um funcionário poderia ser advertido, rebaixado de escalão, suspenso, transferido, expulso, multado e mandado para a cadeia. Podia também ser obrigado a indenizar qualquer cidadão a quem tivesse prejudicado ou pedir desculpas em público. Em época de reforma eleitoral, fica registrada minha aceitação de um “Estado forte”, vigilante, mas honesto, na mesma medida humana (e ética) da sociedade.
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