Quando fiz minha primeira pesquisa de campo, em 1960, entre os povos Terena de Mato Grosso do Sul, com entusiasmado assistente do meu mentor e professor, Roberto Cardoso de Oliveira, demiurgo da moderna antropologia brasileira, ouvi de senhor de origem polonesa e um óbvio olhar oblíquo sobre o Brasil a seguinte história: “Num lugarzinho perdido no miolo do Brasil, havia um boi — chamado Boizinho — que era um exemplo de trabalho e dedicação. Para tudo era chamado e a todos atendia com exemplar competência e entusiasmo.
Se queriam arrastar uma tora, chamavam o Boizinho; se era para arar um pedaço de terra, o Boizinho resolvia; quando se tornava necessário puxar uma carroça maior e mais pesada, lá vinha o Boizinho. De tanto trabalhar, fizeram-no — como prêmio — funcionário da prefeitura. Na primeira emergência a que foi chamado, respondeu: ‘Não vou! Agora sou funcionário municipal’.” Na XIV Bienal do Livro do Rio de Janeiro, dialoguei com o jornalista Larry Rohter, ex-correspondente do “New York Times”. Ele, americano, falou do livro de reportagens que escreveu sobre o Brasil, publicadas no livro “Deu no New York Times” (Rio: Objetiva, 2007); eu, brasileiro e antropólogo, falei do meu livro de crônicas sobre os Estados Unidos, “Tocquevilleanas: Notícias da América” (Rio: Rocco, 2005).
O encontro, exemplarmente mediado pela escritora e jornalista Regina Zappa, foi uma boa oportunidade para, mais uma vez, testemunhar ao vivo que ninguém, como disse São Mateus, é profeta em sua própria terra. Pois só os marginais e os de fora — os profetas — enxergam as rotinas e os pensamentos que pensamos sem pensar. Só elas têm aquele sal do estranhamento e da outridade capaz de revelar a multidão de desconhecidos que estão fora (e dentro) de cada um de nós.
Tal como o Boizinho funcionário municipal que não queria nada com o trabalho estava escondido no outro (e no mesmo) Boizinho que era o maior trabalhador do lugar, eu revelei novidades do sistema americano para Larry; do mesmo modo que ele, como um estrangeiro relativo, revelou novidades para nós. Como miniprofetas dissemos coisas que de outro modo pressentíamos, mas não víamos com nitidez. Deste modo, Larry comenta no seu livro uma das minhas crônicas sobre o (para mim) estranho “futebol americano” como revelador de uma atividade exclusivamente masculina numa sociedade zelosamente pluralista. Ao passo que Larry produziu um comentário de alto significado sobre vida política brasileira — o único, aliás, que foi divulgado pela imprensa — quando, ao falar sobre a sua célebre matéria sobre a relação do presidente Lula com a bebida, disse: “Nos EUA qualquer comportamento que possa impactar o desempenho de um funcionário público é pauta. Lá, quem tem cargo público não tem vida privada — isso não existe, Clinton que o diga. Aqui, há essa ideia de casa e rua como coisas distintas. Eu discordo.” Em seguida, voltou-se para mim, pois era óbvio que fazia uma referência ao meu livro “A casa & a rua”, no qual eu mostro como, no Brasil, casa e rua não são governadas por regras únicas, pois cada um desses espaços tem suas éticas e moralidades.
Aqui, certos cargos — o mais exemplar deles é o de presidente da República — estão excluídos do bom senso. Mas existem os profetas. No mundo moderno, eles viraram jornalistas que denunciam eventuais desvios e têm a licença poética da “liberdade de imprensa” para tanto. Essa licença dos que têm a obrigação de noticiar o mundo, mas devem sempre ouvir o outro lado e evitar tomar partido. Deste modo, o jornalista americano diz com todas as letras que o responsável por um cargo público é por ele dominado ou englobado.
Lá, o direito a ter uma vida privada que pode ser contrária à do papel público, como ocorre rotineiramente no Brasil, onde bandidos tomam conta dos dinheiros do povo, não deve existir. Quem ocupa um cargo público tem que honrar e respeitar esse cargo. É dele um devedor. No Brasil, o cargo é dominado pela pessoa ou pelo partido. A falta de separação entre a pessoa e o papel mostra o viés aristocrático brasileiro. A ausência de consciência entre o público e o íntimo revela o igualitarismo tão admirado por Tocqueville na sua memorável visita aos Estados Unidos e, ao lado dela, a minha permanente surpresa com a riqueza dos debates entre estrangeiros relativos.
Se o Boizinho de nossa história fosse americano ele, como funcionário municipal, trabalharia mais para a sua comunidade. O papel de funcionário englobaria o do ex-bom Boizinho particular. No Brasil, conforme sabemos lendo os jornais que inutilmente profetizam em terras familiares, o Estado cola-se às pessoas, criando apenas privilégios e superioridades, jamais deveres e obrigações.
(O Globo – 30/09/2009)
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