Um rei decide se aposentar e dividir o reino entre as três filhas, premiando-as por sua capacidade de bajulá-lo. Duas delas, Regan e Goneril, bajulam-no; Cordélia, a mais nova, diz que o ama como uma filha deve amar um pai. E pronto. Repleta de abusos contra as regras de governo, essa é a premissa da peça Rei Lear, de Shakespeare.
As regras abusadas são as regras de sucessão. Dividir o reino segundo caprichos tão pequenos é algo que nem eles podem fazer — não sem pagar o preço. Além disso, os reis não podem simplesmente se retirar. É sua figura que dá unidade ao país. Nele, um rei sempre será o rei, e sua mera presença representará um conflito com as autoridades de facto.
Os conflitos são o preço mencionado, e não tardam. Como Lear ainda insiste em ser um fardo para as filhas, carregando um séquito de dezenas de cavaleiros arruaceiros, ninguém quer hospedá-lo. As filhas bajuladoras não hesitam em pôr o pai na rua, e isso durante uma tempestade – um óbvio símbolo natural da situação política.
Lear se surpreende, mas será que o espectador, que já viu duas filhas abusarem do pai e rei que pedia elogios, tem o direito de se surpreender? É comum que os espectadores julguem que Lear fica louco no meio da peça, após ser expulso, mas é claro que desde o início ele não estava bem. Estava possuído por aquilo que os gregos chamavam de hybris, o desejo de desprezar as instituições estabelecidas e reinventar todas as regras. A hybris cria a hibridização, a indefinição dos papéis, e, com isso, os conflitos. O rei ainda é rei? As filhas contra o pai serão ainda filhas?
Ao final, Lear é resgatado, ou quase, por Cordélia. A instituição que Lear desprezou é que vem em seu socorro. A hybris, porém, deixa seu estrago, que é sempre a destruição do mundo. As irmãs que traíram o pai insano desde a primeira cena traem seus maridos e traem uma à outra. Um desses maridos manda matar Lear e Cordélia. A peça termina num festival de assassinatos.
Rei Lear poderia ser readaptada para 2009. A Constituição de um país, seu grande acordo coletivo, a qual mesmo os governantes estão submetidos, proíbe que sequer se cogite a reeleição. Porém, o presidente já tem urnas, vindas do exterior, para fazer um plebiscito a esse respeito. Como Lear, ele quer mexer nas regras de sucessão. Deposto por sua hybris, seu desejo de reinventar os papéis, o presidente é expulso do país, mas retorna secretamente e reaparece numa embaixada estrangeira. Lear era rei e não era; o presidente é presidente e não é. Dentro do país, o não-presidente tem contra si um mandado de prisão; mas, na embaixada estrangeira, não é um refugiado político. Seu papel é totalmente indefinido. À moda do séquito do Rei Lear, o séquito do presidente deposto não quer nem dividir a comida com seus anfitriões. Como na peça Rei Lear, há convulsões civis. Ao contrário do Rei Lear, porém, o soberano que desprezou as regras não dá sinal de que percebe o que fez. Não há Cordélia. A hybris avança e, nesse caso, o estrangeiro ajuda. O que faltará para o morticínio?
(Publicado em OrdemLivre.org)
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