É meritória a concepção que banqueiros e reguladores tiveram ao desenvolver o paradigma que tornou possível que o Brasil enfrentasse décadas de volatilidade macroeconômica, preservando a poupança pública, a moeda nacional, a liquidez sistêmica e a solvência financeira. Fizeram escolhas apropriadas e deram origem ao maior e mais sofisticado sistema de intermediação do hemisfério sul.
Sua arquitetura é uma combinação de três elementos: uma moeda indexada que se ajusta instantaneamente às condições do mercado, um sistema de pagamentos de abrangência nacional e um modelo de negócio bancário sólido, que permite preservar a riqueza monetária dos agentes econômicos superavitários e usar esses recursos para financiar déficits de caixa de outros. Foi uma âncora durante a instabilidade.
O arquétipo foi um sucesso notório e ficou cristalizado como tal para banqueiros e reguladores, virou um dogma rígido. Essa é a causa dos problemas atuais, a visão intransigente. Embora existam partes do sistema que funcionam bem, há sinais crescentes de disfunções que podem e devem ser corrigidas. A realidade mudou, mas não há a percepção de que o paradigma caducou.
Hoje, o modelo de negócios dos bancos é o mesmo de décadas atrás. Pagam caro por recursos de curto prazo e emprestam com uma margem (“spread”) em condições parecidas. No lado da captação, três quartos dos depósitos bancários têm cláusula de resgate antecipado e rendem juros desde o primeiro dia; e na aplicação, mais de três quintos das concessões para pessoa física são de curto prazo, nas modalidades cartão de crédito e cheque especial. Sua serventia num quadro turbulento é indiscutível, mas num cenário de estabilidade é desastrosa.
Ilustrando o ponto, o desemprego, que está num piso histórico, deveria ter reduzido a inadimplência a um patamar mínimo; entretanto, está no dobro da média mundial e aumentando; cada vez mais é debatido se há uma crise de superendividamento, questão levantada no último relatório do Fundo Monetário Internacional (FMI) sobre a economia brasileira. O crédito está crescendo pouco, num nível que é menos da metade de seu potencial, as carteiras são pouco saudáveis e os bancos estão perdendo rentabilidade e legitimidade.
Apesar da cruzada do governo para baixar os juros, os mutirões de renegociação, as campanhas de educação financeira e os anúncios na mídia, a inadimplência não cai e o volume de crédito só aumenta para grandes tomadores. Atualmente, uma em cada dez famílias não tem como pagar suas dívidas e um em cada oito Reais devidos no cheque especial está vencido há mais de noventa dias; o estrago só não é maior por conta do consignado. O estoque real de dívidas abaixo de R$ 5 mil está estagnado, o que significa, que na média, esses devedores pagam os juros mas continuam em débito com o sistema.
É necessário reconhecer que hoje a realidade é diferente do passado. Atualmente, a volatilidade de taxas de juros de cinco anos é menor que a de cinco dias no período da instabilidade, o país tem uma abertura externa que não tinha, as relações financeiras foram fragmentadas, a tecnologia evoluiu e a estrutura produtiva se transformou. Essas mudanças impõem adequações a todos, inclusive para banqueiros e reguladores. Mas isso não acontece.
Apesar da sofisticação tecnológica, o sistema bancário brasileiro é ineficiente, num estudo sobre desenvolvimento financeiro do WEF de 2012, o Brasil aparece entre os que têm custos operacionais mais altos do mundo. Todavia, o problema é tratado predominantemente como uma questão de imagem das instituições e de ganância dos banqueiros. Não é; a causa é fundamentalmente da obsolescência do paradigma.
É possível fazer um paralelo com a indústria nacional que vive uma situação desesperadora. Apesar das reduções de impostos, barreiras protecionistas, a política do compre nacional, créditos do BNDES e a desvalorização do câmbio, ela não vai crescer este ano. A razão é que o paradigma industrial é o mesmo da década de 1950, da substituição de importações numa economia fechada, teve sua serventia na época, não tem mais. Vive-se a terceira revolução industrial, todavia, o discurso é o do Brasil agrícola.
Os vizinhos na América do Sul mostram como é importante uma adequação aos novos tempos. Enquanto Argentina e Venezuela com políticas anacrônicas estão andando para trás com discursos inflamados; Colômbia, Peru e Chile avançam a passos largos em silêncio. E o Brasil? É fato aceito por todos que o potencial é grande, mas para tanto, é necessário fazer ajustes.
Uma agenda de mudanças é complexa (a americana após a crise é um documento de mais de mil páginas). Mas algumas medidas podem ter um impacto grande no curto prazo. Uma delas é começar a alterar o modelo de negócios dos bancos, acabando com a remuneração de liquidez de curto prazo. Só isso possibilita a diminuição de custos e o alongamento de prazos para o crédito. Se complementado com uma redução brusca da cunha bancária, eliminando o IOF, acabando com os compulsórios e simplificando as normas de observância, ter-se-ia um resultado surpreendente.
Outra atitude seria reconhecer e enfrentar a crise de superendividamento. Há espaço para uma reestruturação abrangente sem impor prejuízos a bancos. Apesar do Brasil ter a taxa de financiamentos mais cara do planeta, apenas um terço do peso da dívida (“debt burden”) consiste de juros, a amortização é responsável pela maior parte. Portanto, um alongamento de prazos com ajustes de prestações bem concebido, pode melhorar consideravelmente a situação de muitos.
Em síntese, a âncora que segurou a economia num porto seguro na turbulência está impedindo o país de zarpar. É peremptório reconhecer a necessidade de adequar o paradigma da intermediação aos novos tempos, e mudar.
Fonte: Valor Econômico, 28/11/2012
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