– Você ainda não está autorizada a viajar.
– E por qual razão?
– A razão desconheço.
– Não tenho nenhuma causa legal pendente, não estou sendo processada perante um tribunal.
– No momento, você não pode viajar.”
– Você sabe que esta é uma violação de meus direitos constitucionais. É como o direito à educação e à comida: o direito de poder se mover.
– No momento, você não pode viajar.
– Esta instituição que você representa, um dia acabará. Meus netos não viverão nessas condições. Este país é um grande cárcere, com uma fronteira ideológica, uma fronteira partidária. Os cidadãos aqui são julgados por cores políticas. Mas isso um dia acabará. Porque esta nação nada tem que ver com uma ideologia, nem com um partido. Esta nação existiu e existirá antes e depois de vocês.”
Esse diálogo, cuja íntegra está no blog Generación Y (http://www.desdecuba.com/generaciony), foi travado em 12 de outubro entre a blogueira cubana Yoani Sánchez e uma funcionária do Escritório de Imigração de Havana. A proibição de viajar, reiterada há mais de ano, impediu Yoani de receber o Prêmio Maria Moors Cabot, concedido pela Universidade de Colúmbia, e de comparecer aos eventos de lançamento de seu livro De Cuba, com Carinho, publicado pela Editora Contexto, que se realizam nestes dias no Brasil.
Yoani faz um dos blogs mais acessados do mundo, que é bloqueado na restrita internet cubana. Ela não se enquadra no jogo bipolar da política de seu país. Por erguer a bandeira da liberdade de expressão, é acusada pelo regime castrista de servir a “interesses contrarrevolucionários estrangeiros”. Por registrar que o embargo econômico americano funciona como pretexto útil para a ditadura dos Castros, é acusada pelo núcleo duro da oposição cubano-americana de Miami de operar para o serviço de inteligência de Cuba. A resposta encontra-se no seu livro, na forma de uma citação do compositor antifranquista espanhol Joaquín Sabina: Siempre que lucha la KGB contra la CIA, gana al final la policía.
O Muro de Berlim, ícone desmoralizante do “socialismo real”, caiu há 20 anos, mas uma réplica anacrônica subsiste ao redor da Ilha de Cuba, sob a forma da “fronteira partidária” denunciada por Yoani. Cuba não tem relevância econômica ou estratégica, mas possui colossal importância simbólica: o “grande cárcere” do Caribe representa, ainda hoje, a pátria ideológica da esquerda latino-americana. O episódio do lançamento do livro de Yoani no Brasil é uma aula inteira sobre o tema.
O consulado cubano de São Paulo recusou-se até mesmo a protocolar um convite da editora à autora para os eventos de lançamento do livro. Eduardo Suplicy (PT-SP), desafiando a ortodoxia de seu partido, pronunciou discurso no Senado solicitando a concessão da autorização de viagem. Por iniciativa de Demóstenes Torres (DEM-GO), o Senado dirigiu à Embaixada de Cuba um convite para Yoani debater o livro em audiência pública. Fernando Henrique Cardoso somou-se ao convite, por meio de carta ao governo cubano em que solicitava pessoalmente a permissão de viagem. Mas Havana nem sequer ofereceu uma resposta aos variados apelos – que não incluíram nenhuma voz do governo brasileiro.
Cuba e Brasil são signatários do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos da ONU, que consagra o direito de todos de sair de seu país e retornar a ele. A Constituição determina que o Brasil rege suas relações internacionais pelo princípio do respeito aos direitos humanos. Nada disso importa para Lula, que qualifica Fidel Castro como o “único mito vivo da história da humanidade”, nem para Celso Amorim, que sempre escolhe a palavra “democracia” para se referir a Honduras e a palavra “soberania” para se referir a Cuba. Nenhum dos dois emitiu uma mísera nota de apoio ao convite dirigido pelo Senado à escritora cubana.
O silêncio é amplo e sólido. Tarso Genro, o ministro do Arbítrio, deportou ilegalmente boxeadores cubanos ameaçados de perseguição, mas não moveu um dedo pelo direito legal de uma escritora independente falar ao público brasileiro. Paulo Vanucchi, chefe de um Ministério que ostenta no seu nome os direitos humanos, loquaz na defesa do estatuto de refugiado político do italiano Cesare Battisti, não pronunciou uma única palavra sobre o direito de viajar da cubana cujo “crime” é expressar suas opiniões. Eles não têm vergonha?
Yoani não vem ao Brasil porque o regime castrista pratica um abominável intercâmbio de direitos por fidelidade ideológica. A submissão ativa ao Partido é recompensada por um emprego cobiçado no setor turístico, pela almejada licença para comprar um automóvel ou pela preciosa autorização de viagem ao exterior. A coragem de dissentir é punida com a cassação tácita, jamais justificada, dos direitos inscritos na lei.
Num país que julga seu cidadãos “por cores políticas”, ninguém é verdadeiramente cidadão. Foi isso que Yoani disse no Escritório de Imigração, ao evidenciar o caráter totalitário de um regime que faz a nação se identificar com uma ideologia e um partido.
Os intelectuais de esquerda brasileiros, com honrosas exceções, pensam o mesmo que a ditadura castrista sobre a opinião independente. Anos atrás, num abaixo-assinado, solicitaram a demissão de um articulista que ousara criticar as ideias do palestino-americano Edward Said e há pouco fizeram um escarcéu coletivo em torno de uma palavra fora de lugar no editorial de um jornal. No caso de Yoani, porém, acompanharam o eloquente silêncio de Lula e seus ministros.
A sangrenta consolidação do stalinismo na URSS foi amparada por manifestos emanados da pena de intelectuais “humanistas” como Louis Aragon, Romain Rolland e Paul Sweezy. Nossos intelectuais de esquerda são os herdeiros legítimos deles. A régua com que medem direitos e liberdades é feita do mesmo maleável material ideológico que sustenta o Muro de Cuba.
Há controvérsias.
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