Há uma causa estrutural básica para o clima sociopolítico que castiga o Brasil: no século 20 sua população foi multiplicada por seis, sem que a dinâmica social correspondesse à da quantidade. Houve queda no padrão (a extensão acompanhou a população) da educação pública fundamental, alicerce da cidadania. Valores da religião, família e tradição, os costumes e a boa educação declinaram, muito na classe média. A vulgaridade permeia a cultura popular. E têm crescido as manifestações típicas das multidões amorfas, da identificação com o lúdico, exótico ou licencioso, ao descaso pelos assuntos públicos e pela política. O artigo desenvolve este final de parágrafo.
O quadro demográfico-social em déficit de qualidade e a mudança da feição da população, de rural e esparsa para a predominantemente urbana e adensada, ensejaram a emersão do populismo messiânico, que, valendo-se da propaganda moderna, induz fantasias no imaginário popular e sujeita dezenas de milhões à vassalagem política com desdobramento eleitoral, à semelhança (no efeito, diferente no funcionamento) do passado de patriarcalismo rural. Afirma dar preferência – o que não significa atender – aos interesses da multidão, na verdade, criados ou ao menos modelados por sua retórica elusiva. E sua Nomenklatura se adaptou prazerosamente ao nosso patrimonialismo histórico: a posse do bem público iniciada com as capitanias e transparente hoje na posse dos cargos públicos – adaptação que reforça a resistência brasileira à modernização do Estado e à desestatização, que reduz o campo aberto ao patrimonialismo político, burocrático e agora também sindical.
A Justiça, o Congresso e a mídia independentes não lhe são simpáticos porque a liberdade apoiada nessas instituições favorece o mérito e a qualidade e, sobretudo a mídia, dificulta o estelionato psicopolítico das ilusões – razão da tendência do peronismo/kirchnerismo, do chavismo e outros populismos latino-americanos ao controle delas, de que o Brasil não está imune, como sugere o aventado “controle social da mídia”… Na organização política, o bom funcionamento das democracias tradicionais ocorre com pequeno número de partidos, mas na nossa democracia mambembe a ausência de convicções conceituais e programáticas em nossas três dezenas de partidos (coerente com o déficit cultural do quadro demográfico-social) e a volúpia patrimonialista os tornam vulneráveis à sedução do poder – onde incide o butim dos cargos públicos, em que a competência é preterida pela escolha política de pessoas de discutível (benevolência semântica…) padrão ético e funcional.
Dos anos 1930 até hoje, durante vários períodos (em realce os anos recentes) a política marcada pelo populismo balizou projetos públicos, alguns positivos e também muitos de proposição mais ao agrado da massa aberta à ilusão do que de execução factível. Mutilados ou tornados inviáveis pela realidade, o insucesso desses projetos é rapidamente assimilado na amnésia da multidão anestesiada por novos, de futuro similar. Por seu lado, malfeitos e escândalos que justificaram repulsa pública, mais por estímulo da mídia do que espontânea, improvável no ânimo coletivo lúdico e permissivo do povo, também são rapidamente esquecidos (se é que de fato produziram interesse e repulsa) e eles também, logo substituídos por novos. Tal como no mercado da economia de consumo, projetos fantasiosos e malfeitos ultrajantes, produtos de consumo político da multidão de estrutura cultural frágil e licenciosa, não duram e no Brasil tem sido fácil renovar o estoque…
Reflexos dessa política capenga que responde ao nosso quadro demográfico-social se verificam em todo o espectro da vida nacional. Vejamos apenas três (em respeito à dimensão do artigo) exemplos simbólicos: a preferência pelo protecionismo simpático à multidão, ao invés da produtividade competitiva, exigente de qualidade; a opção neoterceiro-mundista na política externa (a rejeição da Área de Livre Comércio das Américas à revelia das negociações de conciliação de interesses…); e a bomba-relógio do consumismo e do crédito irresponsável. Distorção típica do populismo, autoritário ou democrático nos limites de seu messianismo: os direitos sociais são produto do voluntarismo e precedem os civis e políticos. Nossas Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e Previdência Social foram outorgas do “pai dos pobres” no Estado Novo aos “trabalhadores do Brasil”, então sem direitos políticos, que, na verdade, nem sequer eram reclamados.
Não falta ao Brasil capital natural – recursos, extensão, clima, ausência de cataclismos -, sob esse enfoque sua posição no mundo é invulgar. O que lhe falta é capital humano, em suas expressões interativas, política e social, capaz de tirar proveito pleno do natural. Enquanto países de pouco capital natural – Japão e Coreia do Sul, por exemplo – vivem o progresso impulsionados por seu capital humano, nossas carências nos fazem capengar: avançamos porque o capital natural exuberante ajuda, mas avançamos menos do que avançaríamos se o capital humano (povo e elites, sobretudo a política) ajudasse mais. A compatibilização dos já quase 200 milhões de brasileiros com o mundo moderno, em que a educação de qualidade é fundamental, é um desafio dos próximos decênios. Dela depende o futuro do Brasil, protegido do messianismo populista e aliviado da carga do patrimonialismo tradicional.
Divagação instigante: se escrevesse hoje, como Oliveira Vianna veria tudo isso em seu “Instituições Políticas Brasileiras”, sua propensão autoritária endossaria a do populismo atual? Que relação entre o patriarcalismo rural do passado e o patrimonialismo político, burocrático e sindical atual veria Raymundo Faoro em seu “Os Donos do Poder?” Como a visão marxista de Caio Prado Jr. veria a cupidez patrimonialista da esquerda (?) brasileira, se seu “A Evolução Política do Brasil se estendesse ao populismo atual?”
Fonte: O Estado de S. Paulo, 06/03/2012
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