Transparência e tráfico de influência. Esses dois conceitos se fazem muito presentes na vida institucional do país. Formam o ponto e o contraponto da gestão pública. A falta de um e o excesso de outro acabam contribuindo para a onda de escândalos, denúncias, desvios, acochambrações e máfias que se formam nos subterrâneos da administração pública. E que parecem se alargar no momento em que a sociedade clama por verdade e quando os organismos do Estado se mostram ativos na tarefa de radiografar e lancetar os tumores que infectam as estruturas públicas. Daí se fazer a pergunta: a ilicitude tem aumentado ou diminuído neste ciclo de intenso controle da máquina pública? A considerar o espaço de mídia, a resposta aponta para a expansão da corrupção, mas os contrários à hipótese argumentam que a torrente escandalosa que inunda as páginas da política deriva do sistema de investigação montado pelo Estado, e que abrange as ações do Ministério Público, Polícia Federal, Tribunal de Contas da União nas esferas federal e estaduais. Mesmo que o argumento seja razoável, o fato é que as garras do poder invisível crescem à sombra do poder visível. Na penumbra, bifurcam-se as relações entre o setor público e o setor privado, propiciando a formação das teias de corrupção.
O que fazer para apartar os interesses públicos dos interesses privados? Como o Estado deve agir para evitar a contaminação da res publica pela influência dos círculos de negócios? Entre as muitas propostas e respostas às questões, destaca-se a regulamentação do lobby, nos termos expressos, esta semana, pelo advogado geral da União, ministro Luis Inácio Adams. Para ele, o lobby “pode ser um sistema de qualificação das demandas da sociedade” (FSP, 6/03/2013). A atividade, como se sabe, é frequentemente confundida com tráfico de influência, traduzindo negociatas nos porões das propinas, comissões, licitações encomendadas, superfaturamento. Sob essa compreensão, o termo virou sinônimo de falcatrua e picaretagem. Por isso mesmo, profissionais que se dedicam à atividade passaram a se designar com uma expressão mais qualificada, a partir dos rótulos “relações institucionais”, “relações governamentais”, “comunicação corporativa” etc. A cultura patrimonialista, que finca profundas raízes nos nossos espaços institucionais, também colabora para que a prática de lobby aumente seu teor explosivo.
Para aliviar a carga negativa, costuma-se por aqui fazer referência aos exemplos dos Estados Unidos, maior democracia do planeta, e de outros países que admitem o lobby. Mas o argumento mais denso para explicar o lobby está na própria dinâmica das sociedades democráticas. A democracia representativa vive crônica crise, que se apresenta no amplo painel dos vetores que a movem: o declínio das ideologias, a pasteurização dos partidos, a desmotivação dos quadros, a perda de força dos Parlamentos, o enfraquecimento das oposições etc. Outros pólos de poder emergiram ao lado do poder político tradicional. A débil densidade ideológica da competição política e o desvanecimento dos antagonismos de classes abriram novos circuitos de representação (sindicatos, associações, federações, grupos, categorias profissionais etc) e fontes paralelas de deliberação social. Grupos de pressão se organizaram para formular as demandas da sociedade e encaminhá-las aos partidos. Estes, por sua vez, reforçaram sua função agregadora, com a qual harmonizam as múltiplas posições da comunidade política. Portanto, os grupos pressão e os novos pólos de poder foram a resposta encontrada por uma sociedade multifacetada para vitalizar a democracia.
A atividade do lobby tem que ver com essa moldura. No fundo, ele se encaixa no conjunto de ações empreendidas pelos grupos de pressão junto aos Poderes, aos partidos políticos e à própria opinião pública. Trata-se de um instrumento conectado às demandas da miríade de entidades representativas de gêneros, etnias, setores, grupos e categorias profissionais. Querem um exemplo? Veja-se o paredão de defesa dos interesses dos trabalhadores, formado por sindicatos, federações, confederações e Centrais Sindicais. As organizações sindicais, principalmente as grandes Centrais, agem como canais de convergência de demandas de milhões de filiados. Pressionam o governo, conquistam espaços na malha ministerial, patrocinam caravanas que acampam nas cercanias dos Poderes, em Brasília, constroem corredores poloneses nas Casas Congressuais, dispõem de ampla tuba de ressonância e de canais próprios de comunicação, e até ameaçam atores políticos – partidos e representantes – caso estes não encampem suas reivindicações.
Quem ignora o fato de terem sob seu império a área das relações de trabalho no país? Quem ignora que o ministro do Trabalho, para se manter na posição, precisa ler na cartilha de Centrais Sindicais? E mais: por que a legislação trabalhista no Brasil é uma das mais retrógradas do planeta? Porque o território trabalhista está sob a égide de um protecionismo de índole obsoleta, salvaguarda de um status quo que impede os avanços da sociedade pós-industrial. O imobilismo no campo de reformas se deve, em parte, à fortaleza medieval que Centrais erguem com recursos públicos, onde guardam a chave que abre as portas dos Poderes. Qual é nome da chave? Lobby. Deixemos de lado, portanto, a hipocrisia. O lobby sindicalista aprofunda raízes no território da administração pública. Qualquer proposta de inovação na legislação trabalhista é coisa do “diabo neocapitalista”. Vale lembrar, ainda, que o sindicalismo de caráter oportunista que se expande no país se robustece com as contribuições compulsórias de milhões de filiados. Cofres gordos financiam a alavanca de manutenção e perpetuação do poder.
Pelo exposto, fica patente que a cultura da mamata ainda persiste no Brasil. Nossa democracia seria mais justa se a prática do lobby fosse exercida não apenas por setores privilegiados.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 10/03/2013
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