Na semana passada, tratamos aqui do êxito econômico do capitalismo globalizado nos 20 anos depois da queda do Muro de Berlim. Agora, o outro lado, aquilo que a queda do Muro parecia trazer e não trouxe.
A universalização da democracia – Diversos países do Leste Europeu cumpriram toda a trajetória. Introduziram ao mesmo tempo o capitalismo (a liberdade econômica) e a democracia (as liberdades políticas). Muitos já estão integrados à União Europeia – talvez a maior ganhadora com a queda do Muro -, outros estão a caminho disso. Mas em muitos países, tanto ex-comunistas quanto os que já eram capitalistas, prevalece algum tipo de regime autoritário, não raro uma mistura de autoritarismo com corrupção, como é o caso óbvio da Rússia. No tempo da guerra fria, os dois lados justificavam suas ditaduras como uma necessidade geopolítica. Dizia-se, por exemplo, que os regimes militares na América Latina tinham a função de conter o avanço do comunismo. E inversamente para o outro lado. Terminada a guerra fria, eliminados os conflitos, parecia óbvio que a democracia seria o destino natural de todos.
Curioso: o fim da História era previsto por uma vertente do marxismo. Segundo essa tese, a História era movida pelos conflitos de classe, com o domínio de uma classe social a cada momento. Na fase final desse processo, o proletariado derrotaria a burguesia, introduziria a propriedade coletiva e, no início, uma ditadura para garantir e consolidar os novos tempos. O socialismo eliminaria as classes sociais, na medida em que a propriedade seria de todos. Tudo resolvido, cairíamos no comunismo, democrático, todos iguais, fim da História.
Ora, caído o Muro de Berlim, alguns teóricos da democracia ocidental concluíram: a História, de fato, chegara ao fim, mas pelo lado contrário. Vencem o capitalismo liberal e o seu complemento, a democracia. Ampla liberdade econômica com ampla liberdade política, tudo garantido pela lei e pelas instituições.
Esqueceram-se todos, entretanto, de que o conflito maior, a guerra fria, não eliminara, apenas deixara de lado os outros, oriundos de nacionalismos, xenofobia, religião e ressentimentos entre aqueles que, por algum motivo, ficavam para trás na marcha da globalização.
A universalização da riqueza – Olhando o conjunto, o mundo todo cresceu nos 20 anos pós-Muro. Mas alguns países tiveram desempenho melhor, outros se perderam pelo caminho. E, dentro dos países, o sistema também deixou muita gente para trás. Os EUA, por exemplo, chegaram a crescer vários anos acima dos 3% – um ritmo muito forte -, mas muitos americanos perderam seus empregos para chineses, indianos e brasileiros. Outros empregos foram criados nos EUA, mas para outras pessoas, mais qualificadas, por exemplo.
Todo iPhone da Apple traz a inscrição: “Desenhado na Califórnia, montado na China.” A novíssima tecnologia de informação desenvolveu empresas, negócios e empregos, sobretudo os de maior qualidade, lá nos EUA. E quando se divide o preço do iPhone entre os que o produzem, verifica-se que a maior parte do dinheiro vai para a Apple nos EUA. Mas quem trabalhava em linhas de montagem de celulares perdeu a vaga. Também perderam a vaga os países que não encontraram seu espaço no processo de globalização. Além disso, o sistema permite que os ricos fiquem ainda mais ricos.
Confrontado com essas questões, John Kennedy comentou uma vez: “Quando a maré sobe, todos os barcos sobem.” Mas o pessoal dos iates continua mais confortável do que a turma dos barcos a remo. Com o crescimento econômico, todos ganham, mas isso não muda necessariamente a posição relativa das pessoas. A base do capitalismo é dar a cada um a certeza de que se poderá apropriar dos resultados de sua iniciativa. Isso anima o espírito empreendedor, fonte da inovação e do crescimento. Ora, os melhores ficam ricos.
E daí?, perguntou Deng Xiaoping quando confrontado com o fato de estarem aparecendo milionários na China. E completou: é preciso que alguns enriqueçam para que a economia se mova.
A China moveu-se nessa inédita mistura de ditadura do Partido Comunista com um regime capitalista amplamente disseminado (empresas privadas, nacionais e estrangeiras, produzem mais de 60% do PIB), mas com forte intervenção do Estado. Tirou centenas de milhões de pessoas da pobreza.
Mas tanto lá quanto nos EUA a desigualdade gera ressentimentos, conflitos políticos e enfraquece a base do regime. E daí surgem as políticas com o objetivo de garantir direitos sociais e uma melhor distribuição da renda.
Mas, convenhamos, isso não é novo. Foi na Alemanha Ocidental, no auge da guerra fria, que se cunhou a “economia social de mercado”, um modelo em que controles do Estado tratam de amenizar desigualdades geradas pelo crescimento capitalista.
Durante todo o século passado o mundo oscilou entre o capitalismo mais liberal e o mais controlado. O primeiro é mais dinâmico, gera mais inovações e mais prosperidade, cria empregos e renda, mas também aumenta as diferenças de renda entre pessoas e países. Alguns vão muito mais depressa. O outro modelo distribui melhor a renda, mas atrasa o crescimento pelas amarras que coloca à livre iniciativa. A arte está em obter um equilíbrio, o que varia conforme o momento histórico.
Hoje, por exemplo, quando todo o mundo ainda sofre os efeitos da crise financeira, a moral do capitalismo anda meio por baixo. Prevalecem as opções de maior intervenção do governo. Mais importante, entretanto, é que nenhuma força política relevante, nem nos ex-socialistas, propõe a volta ao antigo regime. O assunto é dar um jeito no capitalismo.
(O Estado de SP – 16/11/2009)
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