“Na verdade, a guinada estatizante – que traz novos riscos de privilégios, corrupção e desperdício – pode reduzir as chances de melhor aproveitamento dessa riqueza” Roberto Campos, um dos mais argutos críticos dos desatinos econômicos da Constituinte de 1988, foi membro da subcomissão que redigiu os “Princípios Gerais” do capítulo da “Ordem Econômica”. Em seu livro de memórias, ele dedicou dois capítulos à derrota das ideias que lá defendeu como senador.
No primeiro deles (“O avanço do retrocesso”, que inspira esta coluna), Campos fala das visões ultrapassadas que ali vingaram. No segundo (“A vitória do nacional-obscurantismo”), ele destaca a criação de novos monopólios do petróleo, a seu ver uma vitória do corporativismo da Petrobras.
Nos anos 1990, a situação mudou: o Muro de Berlim caiu, a União Soviética desapareceu e a estabilidade de preços chegou ao Brasil. Em 1997, sob novas lideranças – Fernando Henrique na Presidência e Luís Eduardo Magalhães na Câmara –, os monopólios foram extintos. O petróleo ganhou uma legislação moderna.
A nova lei abriu o setor à participação estrangeira. Adotou-se o regime de concessão – o padrão de países institucionalmente maduros – para a pesquisa e a exploração de petróleo e gás. A norma atribui o risco aos concessionários. O estado regula e arrecada royalties e participações especiais. Foi um sucesso.
Com o pré-sal e sob outras lideranças, voltamos ao viés estatizante de 1988. Nascerá o regime de partilha, que foi inventado pelas grandes do petróleo para operar em países de instituições fracas, pois assim fogem do risco de tributação confiscatória. A Petrobras será a operadora única, na prática o retorno do monopólio. O retrocesso se vingou.
Em depoimento no Senado, assinalei os riscos do regime de partilha. O estado vai gerir e comercializar o petróleo, o que pode dar margem a favorecimentos e uso político. Burocratas decidirão sobre contratação de serviços de comercialização de petróleo e gás pela União. Definirão preços de venda, porcentuais da União em cada bloco e valor do custo em óleo das empresas vencedoras das licitações. O representante da Petro-Sal nos blocos terá poder de veto. O potencial de corrupção se elevará dramaticamente.
A nova legislação concede enorme poder discricionário ao Executivo, aumentando os riscos de erros de formulação e execução. Poderão renascer políticas ultrapassadas de substituição de importações. O dirigismo sujeitará o setor a incertezas decorrentes de ciclos eleitorais e de mudanças nas regras do jogo por diferentes grupos políticos. Os burocratas poderão ser capturados por grupos de interesse.
Se levadas em conta as declarações de funcionários do governo, a mudança visaria a proteger o nosso petróleo da cobiça internacional. Ou a controlar o ritmo de exploração para dar tempo à indústria nacional de se tornar fornecedora de equipamentos mais complexos. Ou a dar o comando do processo ao estado, que saberia, melhor do que o setor privado, como usar o petróleo em prol do desenvolvimento do país. Haja delírio.
Um deles, também presente no Senado, forneceu a justificativa para o novo marco regulatório: “O petróleo é estratégico”. Surpreendente. Como hoje se sabe, a fonte primária do desenvolvimento é o conhecimento. Estratégica, pois, é a educação, e não um recurso natural, por mais relevante que seja para a economia atual. Por isso Campos dizia que o petróleo não passava de “um líquido pegajoso e fedorento”. A propósito, as três maiores e mais bem-sucedidas economias – Estados Unidos, Japão e China – são importadoras de petróleo.
Vista sob a perspectiva histórica, a futura extinção das reservas de petróleo não deve assustar. Serão crescentes os incentivos à busca de substitutos, como é o caso de programa proposto por Barack Obama. A energia do futuro é a limpa, e não o petróleo. Como dizia um ministro saudita do petróleo, “a Idade da Pedra não acabou por falta de pedra”. A do petróleo não acabará por falta de petróleo.
A propaganda do governo dá a entender que os benefícios do pré-sal virão do regime de partilha. Nada mais falso. O Brasil pode beneficiar-se da dádiva independentemente do marco regulatório. Na verdade, a guinada estatizante – que traz novos riscos de privilégios, corrupção e desperdício – pode reduzir as chances de melhor aproveitamento dessa riqueza.
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