O médico examina o paciente: acima do peso, pouco exercício, ingestão diária de 5.000 kcal. A recomendação é óbvia: “Ou o senhor reduz as calorias, ou aumenta a carga de exercício, ou uma combinação dos dois; sem estas providências, continuará a ganhar peso”. Ao que o paciente responde: “mas, doutor, prometo não aumentar a ingestão para 6.000 kcal/dia; assim devo perder peso mesmo que não me exercite mais, certo?”.
Ainda não pensei na resposta do médico, que deve oscilar entre mandar o paciente embora ou discretamente pedir para que experimente uma camisa de força, “só para ver se cabe em outra pessoa com o mesmo tipo físico, sabe?”, mas, se alguém acha este diálogo irreal, bem, aí sugiro que leia as declarações do presidente do Banco Central [BC] à Comissão Mista do Orçamento feitas na quarta-feira passada.
Naquele fórum, explicou o que queria dizer o parágrafo 21 da ata do Copom, que mencionava a criação de “condições para que, no horizonte relevante para a política monetária, o balanço do setor público se desloque para a zona de neutralidade”, ou seja, que o governo passe a controlar seus gastos.
Segundo ele, “olhando para frente, entendemos que criam-se [sic] as condições para que não tenhamos um balanço do setor público menor que neste ano”.
Em outras palavras, a definição de “neutralidade” da política fiscal segundo o BC é equivalente à manutenção do balanço do setor público no mesmo nível de um período para outro, independentemente deste ser um deficit de 10% do PIB [Produto Interno Bruto], ou um superávit de 10% do PIB.
Desde que seja mantido no mesmo nível, ele seria neutro, e, portanto, não requereria “” do ponto de vista da meta de inflação “” qualquer ajuste compensatório da política monetária.
A esta altura, os 18 fiéis, mais do que acostumados ao uso intensivo da metáfora alimentar, já compreenderam o problema da definição de “neutralidade” fiscal do BC.
Ela é rigorosamente equivalente a manter uma ingestão cavalar de calorias e esperar que o paciente, no caso o Brasil, perca peso sem se exercitar, isto é, consiga reduzir a inflação sem alterar a política monetária.
A verdade é que, exceto em casos de economias muito deprimidas, o gasto público disputa o produto com o gasto privado. Quanto maior é o primeiro, tanto menor deverá ser o segundo, se o objetivo for manter a produção próxima ao nível máximo que a economia consegue sustentar sem gerar pressões inflacionárias (isto é, o “produto potencial”).
No caso, como é a taxa de juros que tem o papel de conter o dispêndio privado, deficit públicos elevados acabam gerando a necessidade de taxas de juros altas para conter a inflação e vice-versa.
Obviamente se o deficit for crescente, a taxa de juros que mantém o produto ao redor do “potencial” também o será, mas a relação original se dá entre o nível do balanço fiscal e o nível da taxa de juros, não entre a variação do balanço público e o nível da taxa Selic.
Não é por outro motivo que os modelos desenvolvidos e empregados pelo BC para prever o comportamento da inflação usam como insumo o nível do superávit primário medido como proporção do produto.
Caso a definição mencionada pelo presidente do BC fosse a adequada, os modelos teriam que utilizar a variação do superavit primário para prever a inflação, o que, felizmente, não fazem.
Isto dito, o presidente da instituição é coautor do artigo que detalha a formulação original do modelo de projeção de inflação, ainda hoje (devidamente aperfeiçoado e atualizado) o principal instrumento empregado na definição da política monetária. Seria surpreendente, pois, se desconhecesse os temas acima discutidos, a menos que tivesse esquecido o que escreveu.
Neste sentido, a definição de “neutralidade” fiscal adotada parece um artifício para justificar a bem conhecida leniência do BC no que se refere à sua tarefa de entregar a inflação na meta. Ou um caso grave de amnésia intelectual.
Fonte: Folha de S. Paulo, 25/09/2013
Isso tudo colocado na reportagem traduz-se somente em duas palavras: incompetência governamental.*