Após a queda do Muro de Berlim (1989) e a subsequente dissolução da União Soviética (1991), muitos membros da supostamente inexistente esquerda começaram a espalhar por aí que “esquerda” e “direita” passaram a se referir apenas a direções espaciais, porém perderam toda e qualquer conotação política. Ledo engano, como pretendo mostrar.
Apesar disso, são esses mesmos indivíduos que continuam usando o termo “esquerda” como uma palavra-sucesso (success-word) e “direita” como uma palavra-fracasso (failure-word), de acordo com a terminologia do filósofo Gilbert Ryle, da Universidade de Oxford.
No Brasil, os usos respectivamente elogioso e depreciativo dessas palavras é coisa antiga. Em geral, dizer que alguém é “de esquerda” é algo positivo, meritório, valoroso, etc., mas dizer que alguém é “de direita” é negativo, demeritório, vergonhoso, etc. – razão pela qual muita gente, principalmente políticos, tem medo de se dizer de direita em público. É coisa que espanta e afugenta possíveis eleitores!
Como dizia o saudoso Nelson Rodrigues: “O brasileiro só de direita trancado no seu quarto e de luz apagada”.
Na realidade, algo pior do que xingar a mãe! Ou xingar um americano típico de big loser fazendo um L com o polegar e o indicador. Dois pesos e duas medidas. Se um indivíduo é de esquerda, todos os membros de direita são considerados de extrema direita, ou seja: fascistas ou nazistas, o que pouca diferença faz.
No entanto, quem não é de esquerda geralmente reconhece a diferença entre uma extrema esquerda, totalitária, e uma esquerda moderada, democrática. Em outras palavras: a diferença entre um comunista e um social-democrata. Neste ponto, penso como F. Hayek, para quem a social democracia corre sempre o risco de se transformar num socialismo totalitário. E como Roberto Campos, para quem “um socialista [democrático] é um comunista envergonhado”.
Ambos oferecem boas justificativas para suas afirmações contundentes. As de Hayek podem ser encontradas em “O caminho da servidão” (1944) e as de Campos, em “A lanterna na popa” (2004), duas leituras imperdíveis.
O grande precursor da social-democracia foi Otto von Bismarck (1815-1898), o Chanceler de Ferro, unificador do Estado alemão. Na sua época, diversos grupos comunistas estavam fazendo grande agitação e pregando a revolução. Bismarck era um reformista nacionalista e a maneira que ele encontrou para combatê-los consistiu em tomar sua bandeira mediante o atendimento de suas reivindicações sociais.
Para tal, ele criou o seguro-desemprego vitalício, assistência médica gratuita, ensino gratuito e outros programas sociais. Pelo fornecimento de intitulamentos aos cidadãos alemães, aumentou as provisões e, com isto também a burocracia e o custo do Estado. Não se pode dizer que o Estado prussiano, e posteriormente o Estado alemão, fossem monarquias constitucionais, mas sim absolutistas em que o kaiser delegou todos os poderes ao seu chanceler: príncipe von Bismarck.
Ele deu sua forte contribuição de caráter político-econômico, para as políticas públicas de caráter socializante, mas não para a democracia. Seu governo foi autoritário e durante a revolução de 1848 chegou mesmo a sustentar o direito divino dos soberanos – um verdadeiro fóssil da História, principalmente após a Revolução Francesa de 1789.
A democracia na Alemanha é instituição tardia, se compararmos com a Inglaterra que já era uma monarquia constitucional desde 1689 com a Bill of Rights, promulgada 100 anos antes da sangrenta e desastrosa Revolução Francesa cuja pior consequência foi a tirania de Nebulion Buonaparte (este era o nome não-afrancesado do abominável corso).
Quem ler Napoleão do historiador Paul Johnson saberá por que qualifico essa personagem da História de “abominável corso”. A Alemanha só conheceu a democracia após a Primeira Guerra com o advento da efêmera República de Waimar em 1919 – um regime parlamentarista transformado em presidencialista em 1930, com Hindenburg nomeando gabinetes muitas vezes de partidos minoritários no Parlamento. A pior consequência desse presidencialismo foi a nomeação de Adolf Hitler como primeiro-ministro, ainda que o Partido Nacional Socialista (Nazista) fosse majoritário graças aos votos dos eleitores alemães. Quem pariu Mateus que o embale!
A introdução do socialismo democrático nas ideias políticas se deu antes mesmo de 1914, com o Partido Social Democrático liderado por Eduard Bernstein (1850-1932), um “revisionista” do marxismo totalitário, que justificava plenamente a expressão de Roberto Campos: “um comunista envergonhado”.
Sua principal discordância em relação ao marxismo-leninismo é que ele não aceitava a ditadura do proletariado como estágio necessário para o estabelecimento de um socialismo provisório com vistas ao milagroso advento de uma sociedade comunista “sem Estado e sem classes sociais”, como propusera a mente anarquista utópica de Karl Marx.
Como vimos, o atual Partido Social Democrático alemão resultou de uma síntese do Estado autoritário, mas provedor de Bismarck, com o Estado democrático, mas anticapitalista de Bernstein: marcado pela ideia de “economia social de mercado” (soziale Marktswirtschaft), que não apresenta grandes diferenças do sistema econômico do welfare state (Estado do Bem-Estar) do Partido Trabalhista britânico e do Partido Democrata americano.
Todos podem ser pensados em oposição ao pensamento socioeconômico do Partido Conservador britânico (Tory) – cuja grande líder contemporânea foi Margaret Thatcher – e ao Partido Republicano americano de Ronald Reagan, aliados num período da História marcado pelo ressurgimento do liberalismo epitetado pejorativamente pelos pensadores de esquerda alemães de “neoconservadorismo” (vide Jürgen Habermas) e pelos brasileiros de “neoliberalismo” – ambos os rótulos eivados de conotações extremamente pejorativas.
Grandes pensadores como o jurista Norberto Bobbio e o economista Murray Rothbard dedicaram livros à diferença entre esquerda e direita. Eles não pensavam se tratar de uma pseudodicotomia, como têm alardeado determinados pensadores de esquerda, principalmente após a dissolução da União Soviética e com o despontar do período pós-guerra fria.
O que pode conduzir a essa ideia de uma dicotomia, que supostamente pode ter possuído sentido e relevância até o fim da guerra fria e da bipoloridade e que supostamente perdeu totalmente ambos com a emergência da globalização e da multipolaridade, é a confusão de regime político e regime econômico feita por muita gente.
A democracia é um tipo de regime político contrastando com o totalitarismo, ao passo que são questões de natureza econômica um sistema dirigido totalmente pelo Estado, um sistema capitaneado pela livre iniciativa ou um sistema misto com a participação da livre empresa e do Estado, com maior ou menor a predominância de uma ou de outro.
O regime misto é atualmente o mais frequente em todo o mundo, juntamente com a maior ou menor participação da livre iniciativa. Segundo penso, é perfeitamente exequível, ainda que não seja desejável, um regime totalitário de esquerda ou de direita acoplado a um sistema econômico marcado pela predominância da livre empresa.
O Chile de Pinochet tinha uma economia de livre mercado, mas era uma ditadura de direita. A China de Deng-Chiao-Ping deu continuidade à ditadura de esquerda de Mao-Tsê-Tung, mas parece ter adotado o modelo chileno, fazendo as devidas adaptações. Deu lugar a uma economia de mercado, principalmente em cidades do litoral como Beijing e Shangai.
O sistema de fazendas coletivas foi apenas atenuado, com os agricultores podendo comercializar uma pequena parte da produção, e o sistema do litoral passou a ser uma espécie de “capitalismo selvagem”. Não muito diferente daquele que Karl Marx observou nas grandes fábricas inglesas da sua época e que ele não acreditou que pudesse melhorar gradativamente mediante boas reformas. Ao contrário, profetizou o fim do capitalismo causado por suas próprias “contradições internas”.
Como profeta, Marx atirou no que viu e acertou no que não viu.
Quem fez a revolução comunista não foi um país de capitalismo avançado – como a Inglaterra ou a Alemanha – mas sim um país semiagrário com um campesinato escravizado, como a Rússia. E quem se destruiu por suas próprias “contradições internas” não foi nenhum país de capitalismo avançado, porém justamente a União Soviética.
Tanto na Inglaterra na época de Marx como na China de Deng-Chiao-Ping na nossa época, podem ser observados a ausência de direitos básicos do trabalhador, regime de trabalho excessivo e desgastante, mulheres e crianças nas fábricas, enfim, um regime semiescravocrata, pois ninguém é obrigado a trabalhar, caso prefira morrer de fome. Não sei dizer se a China já aceitou as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC), mas para efeitos internos continua mantendo seu regime semiescravocrata, tirando todos os benefícios de uma mão de obra abundante e barata, o que gera indizível mal-estar para os trabalhadores, porém grande competitividade de seus produtos baratos e de má qualidade inundando o mercado mundial.
A China passou a ser o maior parceiro comercial do Brasil – lugar antes ocupado pelos EUA – mas está fazendo justamente o que a esquerda atribuía aos EUA: comprando matérias primas e vendendo produtos industrializados. Impossibilitada de competir com o preço das mercadorias chinesas, a indústria brasileira definha a olhos vistos e corre o sério risco de entrar em decadência, como a indústria argentina desde a década de 30, sob a ditadura peronista. Mas não esqueçamos que a hipervalorização do real frente ao dólar e ao euro também tem concorrido para isso.
Para não mencionar a excessiva carga tributária tornando absurdamente caros os produtos de exportação brasileiros e mesmo os comercializados no país. Durante a vigência da guerra fria, países como o Brasil e o Chile foram obrigados a implantar regimes totalitários de direita manu militari como a única alternativa viável para evitar ditaduras de esquerda inspiradas no modelo cubano.
No entanto, o Chile acoplou a ditadura a uma economia aberta sob a orientação dos economistas da Escola de Chicago liderados por Milton Friedman – prêmio Nobel de Economia – ao passo que o Brasil optou pela estatização da economia e pela centralização administrativa. Só no governo Geisel foram criadas mais de 150 empresas estatais!
De um ponto de vista político, devemos ao general Ernesto Geisel o início da abertura para a democracia que teve continuidade com o general Figueiredo, porém de um ponto de vista econômico, nada temos a agradecer com o agigantamento do Estado e o encolhimento da livre iniciativa.
Desse modo, com a transição para a democracia, o Chile que já era um país em grande crescimento socioeconômico, tornou-se um país democrático continuando a crescer a até 14% ao ano. Foi o país que mais cresceu na América Latina nos últimos 30 anos e um dos que mais cresceu no mundo.
Mas o Brasil ainda está pagando alto preço de ter feito uma abertura política sem antes ter feito uma abertura econômica. E reparemos que esse terrível erro estratégico cometido pelos militares brasileiros não só não foi cometido pelos chilenos como também não o foi pelo camarada Deng-Chiao-Ping com sua ideia de “um país, dois sistemas”.
Indagado por jornalistas estrangeiros se, com o novo regime econômico, a China não se transformaria num país capitalista, Deng-Chiao-Ping respondeu com um vetusto e pragmático provérbio chinês: “Se o gato pega o rato, não importa a cor do gato”.
Estou certo de que se ele tivesse cedido a pressões e tivesse começado por uma abertura democrática na China, teria despertado demandas insustentáveis da grande população e inevitável frustração de seus anseios, o que levaria o país a rebeliões e ao caos com o inevitável retorno de um regime manu militari mais feroz ainda.
Mas afinal de contas que significa a dicotomia esquerda/direita hoje?
Sei que esses termos surgiram durante a Primeira República instaurada após a Revolução Francesa. Era de fato uma direção espacial: denominava os membros do Parlamento que se sentavam à direita e os que se sentavam à esquerda da mesa do Presidente, mas que já tinham algumas das ideias típicas de esquerda e de direita. Contudo, após a Revolução Russa (1917) e sua exportação para outros países da Europa e do mundo, a dicotomia adquiriu a conotação política que tem hoje.
O historiador Eric Hobsbawm denominou o século XX de “A Era dos Extremos” (1994), denominação bastante apropriada se levarmos em consideração as emergências do totalitarismo de esquerda (comunismo) e do totalitarismo de direita (nazifascismo), ambos brilhantemente combatidos por Karl Popper em “A sociedade aberta e seus inimigos” (1945) e por Friedrich Hayek em “O caminho da servidão”.
Ao final da Segunda Guerra (1945) e com a derrota dos nazifascistas países do Eixo (Alemanha, Itália, Japão) ocorreu a derrocada da extrema direita. Em 1991, com a dissolução da União Soviética, a extrema esquerda sofreu um duro abalo, mas continuou tendo uma sobrevida na China, Coreia do Norte e Cuba. A Guerra da Coreia, na década de 50, produziu como resultado a divisão do país: Coreia do Sul, capitalista, com grande desenvolvimento socioecomômico e excelente IDH e Coreia do Norte, comunismo hereditário de Kim-Jong-Il, com ditadura feroz e milhões de famintos. Excetuando os três casos mencionados, o espectro político pós-guerra fria ficou reduzido praticamente a duas posições: direita moderada e esquerda moderada, ambas rejeitando os totalitarismos e aceitando a democracia como forma de governo.
No que tange à esquerda, uma distinção torna-se imprescindível: há uma esquerda que aceitou a democracia como um fim (Alemanha, França, etc.) e a que aceitou como um meio – mero expediente para ascender ao poder e acabar com a própria democracia: consumm’d with that which it was nourish’d by (consumida por aquilo mesmo com que foi nutrida) – Shakespeare.
Tenho razões para acreditar que essa é a posição do partido da situação no Brasil, que há muito adotou a estratégia gramsciana de gradativa hegemonia. Vide, por exemplo, as sucessivas tentativas de amordaçar a mídia e o uso assustador da propaganda esquerdista dos governos do PT. Uma das características básicas da esquerda moderada é o coletivismo contrastando com o individualismo da direita moderada.
Mas está em jogo a noção de indivíduo dentro da sociedade em processos de interação com seus sócios, não a de indivíduo fora da sociedade vivendo isolado como um misantropo, de acordo com a importante diferença feita pelo antropólogo Louis Dumont. Diferentemente do anarquismo – na realidade, um regime utópico – ambas consideram o Estado necessário, com a diferença de que a esquerda o vê como um bem necessário e a direita como um mal necessário.
A esquerda concede mais ênfase à igualdade e a direita à liberdade. A esquerda estende a noção de igualdade perante a lei à de igualdade social, ao passo que a direita limita-se a defender a primeira e considera a segunda uma utopia, simplesmente impraticável em virtude dos diferentes graus de talento, capacidade e prudência dos indivíduos, como já mostrou David Hume no século XVIII.
Não entendi porque rotular o nazifascismo como de extrema direita se em seu ideário pregava a supremacia do Estado em detrimento da livre iniciativa, o coletivo acima do indivíduo, e o nacionalismo em oposição ao globalismo…não é uma contradição?
Até gostei do artigo, mas a parte que diz que o governo atual do PT encaminha-se para acabar com a Democracia em minha opinião é equivocada. O Brasil é hoje um estado democrático de direito, possui instituições democráticas e não há possibilidade de uma ditadura. O contexto internacional é outro, diferente dos anos 60. Podem ser feitas muitas críticas ao governo petista, mas não essa, embora respeite a opinião do autor.