Bons administradores de risco são como caçadores de fantasmas. Receiam pelo que ninguém acredita, atuam para evitar o que ninguém vê (ou quer ver). Se não conseguem evitar o que temiam, são cobrados pela falta de precaução. Se bem-sucedidos, evitam o pior. Mas como o pior não ocorre, poucos acreditam que havia risco de verdade. Era tudo excesso de zelo, estavam vendo fantasmas, era pura paranoia. Neste ano, o Banco Central do Brasil (BC) provavelmente sofrerá deste mal: terá que subir os juros antes que a inflação vire um problema. Será acusado de excesso de zelo, ou pior, caso não atue, deixará um problema inflacionário para o ano seguinte.
O Banco Central é caçador de fantasmas por natureza. Administra o risco da volta da inflação para preservar, em última instância, a estabilidade macroeconômica, o que beneficia a todos. Mas, para isso, tem a obrigação de antecipar-se aos eventos, subir os juros para evitar o retorno da inflação. Se for bem-sucedido, a ameaça inflacionária é debelada e a inflação permanece em torno da meta.
Mas o trabalho bem-sucedido é difícil de comunicar. Para o grande público, a ameaça não era real, a inflação já estava controlada antes, e assim continua. A impressão deixada será que o BC subiu os juros desnecessariamente: viu fantasmas.
Ao longo do tempo, a realidade prevalece. Um Banco Central que, de verdade, tem excesso de zelo (paranoia inflacionária) terá sobrerreagido várias vezes, levando a inflação a situar-se sistematicamente abaixo da meta, com flutuações maiores no produto (ou seja, gerando recessões desnecessárias). Por outro lado, um Banco Central leniente com os riscos, vai “surpreender-se” em demasia com o excesso de demanda e gargalos e, na média, produzir uma inflação acima da meta prometida à sociedade.
Haverá um desafio para o BC (vulgo “caçador de fantasma monetário”) neste ano. O BC deverá precisar subir os juros. O desafio de comunicação do BC, paradoxalmente, virá das boas condições macroeconômicas. O PIB do Brasil estará crescendo a uma taxa vigorosa (6% ao ano), com inflação sob controle (em torno de 4,5%).
Então, por que mexer? Porque o futuro se delineia diferente do passado, e mesmo do presente.
A inflação acumulada estará bem comportada ao longo da primeira metade do ano, refletindo principalmente o passado — a capacidade ociosa advinda da crise do ano passado e seu impacto defasado sobre a inflação de alguns bens e serviços.
Mas a economia cresce a taxas vigorosas, o que ocupará rapidamente a capacidade ociosa. Os dados de utilização da capacidade da indústria já refletem isto (devem chegar ao pico anterior de 86,7%, ainda no mês de maio). O desemprego continua diminuindo, resultado da criação acelerada de emprego. Em algum momento vão surgir gargalos ou, simplesmente, pressões para elevação de preços, resultado de excesso de demanda.
Já, hoje, a demanda doméstica cresce cerca de 10% em termos anualizados, por enquanto satisfeita pela ocupação da capacidade ociosa e por importações crescentes.
O crescente aquecimento da economia brasileira não vem de hoje. O Brasil já cresce a taxas elevadas desde o segundo trimestre do ano passado.
E não há sinais de reversão dessa tendência. O consumo deve continuar a crescer forte, estimulado pelo aumento da renda e do crédito.
O investimento se expande a taxas muito elevadas — bom sinal para o futuro da economia —, mas demandará recursos crescentes no curto prazo. E os gastos correntes do governo continuam subindo a taxas elevadas.
E os estímulos governamentais para combater a recessão (de quase 12 meses atrás) continuam valendo hoje. Alguns sendo prorrogados, outros criados. Como esses processos são mais lentos, erros de política econômica demoram a aparecer, mas também são mais custosos de consertar.
Em suma, é provável que o BC tenha que subir os juros neste ano, antes que a inflação vire um problema.
Se tudo correr bem, terá cortado o mal pela raiz. E será acusado de ser conservador, ter excesso de zelo ou ser caçador de fantasmas.
Difícil tarefa de comunicação para o governo.
(O Globo – 05/01/2010)
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