A Constituição “cidadã”: distribuindo bondades para todos
Já o Preâmbulo da Carta estabelece o compromisso dos constituintes com a instituição de “um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna”. Ainda que anódinos, genéricos ou simplesmente de bom-senso, tais princípios são reveladores do espírito e da mentalidade dos constituintes, e que se reflete também no que se poderia chamar de “consciência coletiva” da maioria da população. Ao colocar a “igualdade” como valor supremo do país, ainda que no seguimento da liberdade, a sociedade expressa seu comprometimento com um objetivo que não é autorrealizável, ou básico, como o da liberdade, já que, tendo em conta a realidade objetiva das desigualdades estruturais e inerentes às relações sociais entre as pessoas, a “igualdade” como valor supremo teria de ser construída por algum tipo de pacto social. Esta é uma velha questão que divide a humanidade, e as escolas filosóficas, desde o Iluminismo, pelo menos, ao colocar de um lado a tradição liberal clássica, privilegiando as liberdades individuais, que teriam de ser sacrificadas se a segunda tradição, a da engenharia social tivesse de ser efetivada, do outro lado. Essa visão perpassa todo o texto constitucional e se revela num sem número de dispositivos.
A mesma visão igualitarista e promotora de direitos coletivos perpassa o conjunto das propostas orientadoras da vida nacional, como se pode constatar desde o Título I, relativos aos Princípios Fundamentais da República Federativa do Brasil. Esta tem como fundamentos, entre outros princípios, “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa” (Art. 1º, IV), e seus objetivos fundamentais (Art. 3º) são, pela ordem: “I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
Em outros termos, não basta a sociedade ser livre, o que deveria ser uma condição básica, inerente ao ser humano, para cada um possa buscar sua felicidade e sua prosperidade, nos seus próprios termos, ou seja, em total liberdade (respeitada a liberdade dos demais membros da comunidade), mas se proclama a intenção de construir – o verbo não é inocente – uma sociedade justa e solidária.
Já se observou que a Constituição brasileira é pródiga em direitos e menos enfática quanto às suas contrapartidas. Numa contagem linear, constatou-se a existência de dezenas e dezenas de “direitos”, quase duas centenas, e menos de duas dezenas de “deveres”, sendo que estes invariavelmente estão vinculados a deveres que o Estado possui em relação à sociedade. Da mesma forma, o conceito de “eficiência” comparece duas vezes, unicamente, sendo uma relativa à segurança pública e a outra aos mecanismos de controle interno. Por fim, o conceito de “produtividade” só aparece três vezes, nos artigos 39 e 218, mas com exceção de uma menção a programas de produtividade, as outras duas menções se referem a prêmio de produtividade e ganhos a esse respeito que os empregadores tem o dever de assegurar a seus trabalhadores. Em resumo, a carta constitucional brasileira se apresenta como um imenso manancial de direitos, favores e benefícios, em favor de indivíduos ou de grupos inteiros, com um número menor de deveres, geralmente vinculados a encargos do Estado.
Não é preciso ressaltar a prolixidade do texto constitucional, bem como sua extensão, provavelmente inédita nos anais constitucionais mundiais. Pode-se no entanto observar que esse detalhamento excessivo, essa obsessão com a constitucionalização de cada aspecto, por vezes o mais anódino possível, da vida nacional, obriga, necessária e consequentemente a um trabalho infindável de revisão do texto constitucional a cada etapa de discussão em torno de políticas públicas. Não estranha, assim, que as emendas constitucionais – e também novas disposições transitórias – venham se acumulando a cada ano, à razão de quase três emendas para cada um dos 25 anos desde a sua promulgação. Uma consulta à base de dados do Senado Federal, em 4/08/2013, revela a existência de 73 emendas constitucionais, várias delas emendando emendas anteriores, sendo que a última aprovada no Congresso, relativa à criação de tribunais regionais federais, à revelia do próprio texto constitucional, pode ainda ser declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal.
A primeira seção substantiva da Constituição, Título II, Dos Direitos e Garantias Fundamentais, apresenta, em seu capítulo I, os “direitos e deveres individuais e coletivos”, mas curiosamente, ele contempla muitos direitos, mas nenhum dever, o que pode ser um indicativo do mencionado desequilíbrio conceitual apontado acima. Em todo caso, esse capítulo contém o Art. 5º, que trata das garantias individuais, entre elas o “direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”, mas “nos termos seguintes”:
“XXII – é garantido o direito de propriedade;
XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;”
Em outros termos, impõe-se à propriedade uma não definida “função social”, o que pode abrigar vários tipos de interpretação, sempre a cargo do Estado ou de seus representantes. Contraditoriamente, o inciso XX desse mesmo artigo, diz que “ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado”, mas tal dispositivo não parece coadunar com o recolhimento compulsório, pelo Estado, do valor da remuneração de um dia de trabalho de cada assalariado em favor de um sindicato ao qual ele não está obrigado a associar-se. Existem, na Constituição, diversas obrigações compulsórias desse tipo, que na prática restringem a liberdade individual de cada um, assim como impõem restrições ao usufruto da propriedade ou de ativos legítimos.
O artigo Art. 6º, Capítulo II, “Dos Direitos Sociais”, foi emendado duas vezes, em 2000 e em 2010, sempre para acrescentar novos direitos aos originalmente inscritos pelos constituintes: ademais daqueles relativos à “educação, saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”, como constante do texto inicial, foram acrescentados, nas duas emendas (26 e 64), os relativos à alimentação e à moradia, presumivelmente criando mais uma obrigação para o Estado, que terá de contemplar esses direitos dos cidadãos, sem que se especifique sua forma de prestação e, sobretudo, sobre os custos incorridos. Seria interessante conhecer quantos Estados no mundo garantem, em sua legislação suprema, tais tipos de direitos, e se eles os fazem seguir de medidas ativas visando garantir na prática esses direitos elementares pela via das políticas públicas.
O Art. 7º, relativo aos direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, estipula uma relação generosa de benefícios sociais e laborais, impingindo sobre o contratualismo direto que poderia ser estabelecido entre os agentes econômicos primários, acarretando, como é de se esperar, uma série de custos efetivos ao empregador que não existem em outros países, ou que são deixados para livre negociação, individual ou coletiva. Esses direitos representam encargos por vezes excessivos para as empresas – sejam elas pequenas ou grandes – e, consequentemente, diminuem sua competitividade no confronto com ofertantes de outros países.
Todos os direitos, em seu conjunto, fazem com que a folha salarial de uma empresa, correspondente aos vencimentos pagos efetivamente aos trabalhadores, seja acompanhada de uma outra série de encargos, praticamente em montante equivalente, que onera excessivamente o sistema produtivo nacional, tornando-o pouco competitivo em relação a similares de outros países. Muitos desses dispositivos não precisariam figurar na carta constitucional, podendo ser inscritos na legislação infraconstitucional, ou até serem deixados ao livre arbítrio e à negociação direta entre as partes. No caso do Brasil, existe uma tendência excessiva à regulação compulsória das relações sociais, o que, ademais de seus efeitos econômicos imediatos, como os aqui evidenciados, traduz uma indisfarçável compulsão à restrição das liberdades individuais em favor de regras compulsórias emitidas pelo Estado, numa aproximação clara aos modelos corporativos, ou formalmente fascistas, já descartados pela história e pela racionalidade econômica.
O dispositivo que comanda a “irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo”, também atua para impedir a necessária adequação das despesas com esse tipo de insumo aos momentos de recessão ou diminuição da dinâmica da demanda, fazendo com que a empresa tenha de despedir funcionários (mas aí também incorrendo em outras despesas, sob a forma de indenizações e multas relativamente importantes). De fato, a legislação laboral no Brasil interfere na capacidade do empresário determinar livremente, em negociações diretas, o volume e o preço do fator trabalho, um dos insumos mais relevantes do processo produtivo. O mesmo impedimento vale, aliás, para setor público, obstado constitucionalmente de regular seus gastos com pessoal, independentemente da situação das contas públicas.
Este trecho é a segunda parte do artigo “A Constituição brasileira aos 25 anos: Um caso especial de esquizofrenia econômica”, escrito por Paulo Roberto de Almeida e publicado na revista “Digesto Econômico”. Leia a terceira parte.
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