1. Comércio e divergências macroeconômicas no Mercosul
A Argentina sempre foi, historicamente, um grande parceiro econômico do Brasil, mais pelo lado do comércio do que por outros fluxos econômicos, embora, desde a criação do Mercosul e a partir da intensificação de diferentes acordos setoriais, as relações recíprocas tenham conhecido, nos anos 1990, expansão notável também pelo lado dos investimentos e dos demais fluxos ligados a serviços, cooperação científica e tecnológica, bem como alguns projetos conjuntos em áreas selecionadas.
Até os anos 1980, a Argentina sempre esteve entre os dez primeiros parceiros comerciais do Brasil, mesmo não alcançando os primeiros lugares. Com a aproximação pós-ditaduras militares em ambos os países, teve início o processo de integração, primeiro pelo Programa de Integração e Cooperação Econômica (PICE), de 1986, baseado em protocolos setoriais e comércio administrado, depois pelo Tratado de Integração de 1988, reduzindo tarifas e criando uma zona de livre comércio gradual até chegar a um mercado comum em dez anos, e finalmente, pela Ata de Buenos Aires, de julho de 1990, que estabeleceu o livre comércio e a união aduaneira num prazo de quatro anos e prometia um mercado comum, no formato intergovernamental a partir de 1º de janeiro de 1995. A Argentina despontou, então, entre os primeiros cinco parceiros.
O Mercado Comum do Sul (Mercosul), de 1991, nada mais é senão o mesmo acordo de mercado comum de 1990, estendido a dois novos parceiros, Paraguai e Uruguai, tornando quadrilateral, portanto, o que era apenas bilateral. Os fluxos de comércio intra-Mercosul cresceram significativamente nos primeiros nove anos de existência, não sem alterações de direção nos saldos bilaterais (de maneira algo errática em função das políticas cambiais), mas, a partir de 1999, veio a enfrentar crises de várias naturezas, das quais não parece ter se recuperado, mesmo com a retomada do crescimento de seus membros individualmente.
Com base nos instrumentos originais, – Tratado de Assunção de 1991, Protocolo de Ouro Preto de 1994, muitas resoluções do Conselho e normas do Grupo Mercado Comum e Comissão de Comércio – o comércio se expandiu de maneira exponencial entre os quatro parceiros entre 1991 e 1999, criando na Argentina aquilo que veio a ser conhecido como “Brasil dependência”, tendo o Brasil se tornado seu primeiro parceiro em ambos os fluxos de comércio. No caso do Brasil, o Mercosul, no qual o comércio com a Argentina ocupa a maior parte dos fluxos, passou de porção menor do comércio exterior total brasileiro (apenas 4% em 1991) até alcançar fração respeitável, cerca de 15% no seu momento de maior relevância, no final dos anos 1990; a Argentina oscilou, então, entre a segunda ou a terceira posição mais relevante nos mercados exportadores brasileiros – logo depois dos Estados Unidos e à frente de vários parceiros tradicionais europeus. Ocorreu muita oscilação no comércio bilateral e na repartição dos saldos, pois ambos os países passaram por crises cambiais recorrentes, sobressaltos financeiros ou descompassos monetários em momentos diversos, sendo o ano de 1999 um divisor importante, não apenas economicamente, mas também politicamente. Pode-se dizer que a partir daí o Mercosul, mesmo continuando a ser importante comercialmente para o Brasil (e certamente para a Argentina), perdeu espaço nos fluxos globais do Brasil (reduzindo-se a menos de 10% do comércio exterior global depois disso).
As razões da perda de importância relativa são muitas, mas elas têm a ver, basicamente, com divergências nas políticas econômicas dos dois países, que nunca foram muito alinhadas, mas cujas diferenças eram minimizadas por ações mais ou menos convergentes das lideranças políticas nos dois países no decorrer da primeira década. Na verdade, a divergência macroeconômica entre Brasil e Argentina existe desde a origem do Mercosul, uma vez que, quando do seu nascimento, em 1991, a Argentina já tinha adotado o regime cambial da paridade absoluta entre o peso e o dólar, o que estabilizou temporariamente sua economia, depois das crises de hiperinflação do final dos anos 1980 e início dos 1990. Ainda assim, o novo regime foi valorizando paulatinamente o peso e, já em meados da década, a Argentina começou a enfrentar problemas de competitividade nas suas exportações, contornados por artifícios protecionistas e recurso a empréstimos externos, para compensar saldos deficitários nas transações correntes. O único país com o qual a Argentina mantinha saldo favorável, na segunda metade da década, era justamente o Brasil, por força de comércio administrado (automóveis, trigo, petróleo) e da valorização do real na primeira fase do Plano Real.
Quando da crise cambial no Brasil, em setembro de 1998, e da desvalorização e adoção do regime de câmbio flutuante, a partir de fevereiro-março de 1999, a Argentina perdeu seu último grande provedor de divisas, e o regime de conversibilidade entrou em crise terminal (também agravada pelos déficits orçamentários, excessos de emissão de moeda e de endividamento externo). Entre 2001 e 2002, a Argentina experimentou uma das mais importantes crises de sua história recorrente e repetida de crises econômicas, o que afetou gravemente o comércio bilateral e no âmbito do Mercosul. Chegou-se inclusive a falar de dolarização completa, mas, em função da maxidesvalorização então adotada e da decretação de moratória total sobre a dívida externa, chegou-se a um regime de câmbio administrado. O comércio bilateral e intrarregional declinou 50% e, mesmo recuperando-se paulatinamente na década seguinte, não mais voltou a exibir a importância relativa que ele teve durante a primeira década do bloco.
Não obstante, existiu ali, ainda que de maneira involuntária, uma primeira oportunidade para a adoção de mecanismos monetários e cambiais que poderiam ter permitido realizar um dos requisitos do Mercosul para a consecução do seu mercado comum, que é a convergência macroeconômica a partir de políticas harmonizadas nessas áreas. Esse não foi, entretanto, o caminho seguido pelos dois países, muito em função da adoção, pela Argentina, de políticas de corte heterodoxo e de claro sentido protecionista. Desde então, aprofundou-se a divergência entre os dois países, mesmo com a recuperação – nunca completa ou acabada – dos fluxos nominais de comércio.
A bem da verdade, tanto o Brasil quanto a Argentina, tornaram-se mais protecionistas, ao longo da primeira década do novo milênio, mas foi a Argentina quem recorreu a mecanismos claramente em contradição com as normas e procedimentos formalmente em vigor no âmbito do Mercosul, em face da complacência do governo brasileiro, alegadamente em “solidariedade” com a recuperação econômica e o processo de “reindustrialização” do principal parceiro regional. A “paciência estratégica” do Brasil com respeito aos descumprimentos argentinos dos requerimentos do Mercosul serviu apenas para que o país aprofundasse suas medidas discriminatórias contra as exportações brasileiras, em total oposição não apenas às regras do bloco regional, mas também com respeito às normas do sistema multilateral de comércio. O governo brasileiro nunca utilizou-se do recurso aos mecanismos de solução de controvérsias do Mercosul ou do sistema arbitral do Gatt-OMC, apenas solicitando a mesma paciência por parte de suas empresas exportadoras em relação aos descumprimentos argentinos.
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