Literalmente. Na Venezuela, o segundo político mais importante do país, Diosdado Cabello, presidente do Parlamento, rival do presidente Nicolas Maduro no governismo, estreou programa semanal de TV, em horário nobre, exibindo um porrete com pregos para “golpear os discursos dos opositores”. A imagem bate forte na lição que Simon Bolívar, o Libertador, herói e ícone dos venezuelanos, deixou pouco antes de morrer, em 1830, em Santa Marta, na Colômbia: “O sistema de governo mais perfeito é aquele que produz a maior quantidade de felicidade possível, maior quantidade de segurança social e maior quantidade de estabilidade política.” Não é o que ocorre naquele país, onde tudo está escasso, até papel higiênico. Mas o porrete não é arma exclusiva da Venezuela. Circula bastante por estas plagas. Sua multiplicação pelas ruas das grandes cidades não se deve à afinidade do Brasil com o regime implantado pelo falecido comandante Hugo Chávez. É fruto do nosso baixo produto nacional bruto da felicidade.
“O que dizer de um magistrado que deixa a toga de lado para sugerir suspeitas de campanhas de arrecadação de recursos para pagar multas de apenados na Ação Penal 470?”
Por aqui, as porretadas começam nos vãos da política. Coisa natural em ano de eleições. O presidente do PT, Rui Falcão, golpeia opositores atribuindo a eles a pecha de representantes do “neopassadismo” (Aécio Neves, do PSDB) e “neovelhismo” (Eduardo Campos, do PSB), em capciosa referência aos avôs dos dois pré-candidatos, Tancredo Neves e Miguel Arraes. O senador mineiro, em resposta à candidata Dilma Rousseff, que chamara os rivais de “caras de pau”, viu nos neologismos e ataques a situação do PT, partido “à beira de uma crise de nervos”, enquanto o governador socialista de Pernambuco anunciava que “o país parou” por conta de um “pacto mofado”. Ao contrário, refuta a presidente, “todo dia a gente sobe um Himalaia”. Estocadas à parte, e até reconhecendo que a expressão tende a subir o tom por conta da emblemática campanha – fim ou continuidade do ciclo petista? -, o fato é que o clima social é turvo: as tensões se acirram, a insegurança se expande, a desordem ocupa as ruas, as milícias mostram-se despreparadas para conter o ímpeto das turbas, os atores políticos encolhem o discurso e o sinal amarelo aparece no farol da economia.
A imagem de um país na corda bamba emerge com força. De um lado, um Estado que realiza uma das mais extraordinárias experiências contemporâneas na frente da distribuição de renda, cantada e proclamada no mote dos 30 milhões de brasileiros que ascenderam à classe média; de outro, um território com visível desequilíbrio na esfera de serviços públicos essenciais, a partir da mobilidade urbana, faísca que acende fogueiras por todos os espaços. Será que esse Estado preparou a infraestrutura para receber o novo contingente de classe média? Onde estão os equipamentos de lazer, as praças e parques, os espaços de convivência? O porrete, por seu lado, está banalizado. E baixa pesado sobre as turbas. Nunca bateu tanto no jornalismo, onde estão os olhos, os ouvidos e as bocas das democracias. Os dados são assustadores: 118 jornalistas foram agredidos desde junho do ano passado, 75% dos quais, segundo levantamento da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), vítimas dos porretes da PM. Em 2013, seis profissionais foram assassinados a mando de grupos políticos, agiotas e narcotraficantes. Incêndio de ônibus virou rotina. Quase todos os dias, um ou mais. Já foram queimados no Estado de São Paulo, nos últimos tempos, cerca de 100 ônibus, crimes atribuídos na maior parte ao PCC. O porrete informal açoita os costados do poder formal do Estado.
Os bastões dos vândalos também estão no ar. Para destruir, quebrar, matar. O assassinato de Santiago Andrade, da Band, comoveu o país. Pergunta-se: o que se fez ou o que se fará para evitar o vandalismo? Lembrança: “a bandidagem mascarada” ocupa as ruas desde os meados do ano passado. O que os governos – federal, estadual, municipal – fazem para conter a violência das gangues? As providências são despejadas nos tonéis de promessas e vãs palavras. As autoridades se contentam em anunciar a óbvia apuração de casos, imaginado que a prisão de delinquentes, como a do rapaz que matou o cinegrafista com o rojão, seja suficiente para produzir catarse e acalmar a alma social. Não vêem que a primeira pedrinha do dominó rolou e as outras caem em sequência. A primeira pedra é a da credibilidade dos governantes, por conseqüência, de toda a esfera política. Foi derrubada pelo descrédito, fruto da incapacidade dos atores para dar respostas satisfatórias às demandas da sociedade organizada. As outras pedrinhas também levam nome: impunidade, lerdeza, burocracia, ladroagem da coisa pública, superfaturamentos, máfias nas malhas da administração pública, politiquice, falta de seriedade, desprezo pela liturgia do poder.
O que dizer de um magistrado que deixa a toga de lado para sugerir suspeitas de campanhas de arrecadação de recursos para pagar multas de apenados na Ação Penal 470, quando poderia se reservar e preservar a força simbólica do cargo, eis que imbróglios como o que chamou sua atenção, poderão, mais adiante, bater em sua mesa? O que dizer de parlamentar que, com gesticulação incongruente com o evento solene de que participava, procurou fustigar o presidente da Suprema Corte, ao seu lado? Os atos de desrespeito, deboche, humilhação se espalham nas cercanias do império da desordem e da anomia que se alastra no país. Nossa vista já alcança a efervescência a ser gerada pelo maior evento esportivo, a Copa do Mundo. Mas não dá para ver se faltarão água e luz nas cidades e nos estádios. Ou, mesmo, se o acesso às arenas esportivas será fácil e tranquilo. A confiar nas autoridades, tudo correrá às mil maravilhas. A acreditar que Deus é brasileiro, teremos efetivamente a Copa das Copas. Com porretes contidos, claro. Sem quebra-quebra. E aplaudindo o equilibrista, vendo-o chegar ao outro lado da corda esticada a mil metros de altura. Leitor, acredite se quiser.
Fonte: Folha de S. Paulo, 16/02/2014
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