O presidente Luiz Inácio Lula da Silva pretende remendar o Programa Nacional de Direitos Humanos – reeditar, na linguagem polida -, segundo informação de Brasília. Pretende, além disso, trocar a expressão “aprova” por “torna público o programa”, como se isso o inocentasse das barbaridades contidas no decreto por ele assinado, sem ler, segundo alegou, em 21 de dezembro. Mas é inútil querer mudar. Ao contrário de boa parte do lixo, aquele besteirol autoritário não é reciclável.
O abandono da palavra “aprova” é apenas mais uma tentativa de fugir da responsabilidade por uma iniciativa ruim. Em 2004 o presidente enviou ao Congresso o infeliz projeto do Conselho Federal de Jornalismo – um comitê de censura. Depois, diante do insucesso, alegou haver apenas encaminhado uma proposta apresentada ao governo. Qual será o comportamento mais escandaloso e menos compatível com a dignidade presidencial: 1) alegar ter assinado um decreto de 92 páginas sem ler; 2) remendar a linguagem desse documento para não se comprometer; 3) assumir, como no caso ocorrido no primeiro mandato, o papel de carimbador e despachador de papéis?
Nenhuma dessas questões deve impressionar os menores de idade mental, os demais amantes do autoritarismo e, de modo geral, os aspirantes a uma boquinha ou os já beneficiados pelo aparelhamento da administração. Mas são importantes para os demais cidadãos.
Estes entendem por que o ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, descreveu o decreto como fonte de insegurança jurídica. A exigência de mediação entre invasores e vítimas de invasão, antes de se emitir uma ordem de reintegração de posse, não é fonte de preocupação apenas para fazendeiros ou para outros proprietários de imóveis de qualquer tipo.
Essa proposta envolve uma inversão dos padrões de legalidade: joga para segundo plano os direitos da vítima e converte o violador em presumível detentor de direito sobre o objeto de esbulho. Várias outras mudanças contidas no decreto produzirão o mesmo efeito de insegurança, se forem convertidas em lei. A “incorporação dos sindicatos de trabalhadores e centrais sindicais nos processos de licenciamento ambiental de empresas” servirá, na melhor hipótese, para retardar inutilmente a decisão administrativa.
As demais hipóteses são mais assustadoras: como será usado o poder cartorial atribuído a sindicatos e centrais – especialmente àqueles habituados a viver de impostos e à sombra do poder público? Será mais uma privatização, com certeza custosa, de um processo público.
A preocupação demonstrada pelo presidente da Associação Brasileira de Infraestrutura e Indústria de Base (Abdib), Paulo Godoy, é inteiramente justificável. A inclusão de novos participantes no processo cria, segundo ele, “mais um balcão” no caminho de quem precisa obter avais e pareceres. A palavra balcão é usada, aparentemente, no sentido de instância burocrática. Mas essa palavra tem vários sentidos e é prudente levá-los todos em conta, quando se torna mais complicado um esquema de licenciamento.
Não há como consertar um projeto autoritário, tão antidemocrático, em seus objetivos, quanto as fórmulas de controle e de coerção da imprensa concebidas pelo governo e por seus acólitos desde o primeiro mandato e agora reeditadas. A própria noção de direitos humanos é distorcida, para se converter em princípio ordenador de todas as leis, de todos os direitos e de toda a organização social e econômica. É distorcida porque se amolda a uma concepção particular de ordem política, baseada na relação direta entre um poder supremo e grupos sociais arregimentados para sustentá-lo. Congresso e Judiciário são instituições para figuração.
Os grupos de base são sindicatos pelegos, entidades estudantis financiadas pelo governo, “despossuídos” transformados em cidadãos especiais e organizações alimentadas com dinheiro público e mobilizáveis, facilmente, para manifestações políticas e às vezes para ações violentas. Tudo isso é típico do populismo autoritário, instalado abertamente na vizinhança latino-americana, com aplausos do presidente Lula. No Brasil, as bases dessa política são moldadas com mais discrição, mas de forma indisfarçável. Direitos humanos são promovidos, incorporados na lei e defendidos mais seriamente em países onde vigora o Estado de Direito, onde há segurança jurídica e a imprensa é livre de tutela. O decreto, como tantas outras iniciativas do governo Lula, aponta para outra direção.
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