Essa mania de comparar política e futebol só piora a democracia. Precisa levar cartão amarelo
Há poucos dias, o ex-presidente Lula comparou sua sucessora, Dilma Rousseff, a um técnico de futebol: “A Dilma é que nem o Tite. Não deixa o time jogar”. Ficou chato para a Dilma, que levou o carimbo de retranqueira. Ficou ainda mais chato para o Tite, que não tem nada a ver com o basquete.
No lance seguinte, as frases de Lula, amante declarado do ludopédio e casado (de papel passado) com a política, foram bater nos ouvidos de Aécio Neves. Desafiado a se comparar a um treinador, Aécio optou pelo nome do mineiro Telê Santana (1931-2006): “Ele sabia fazer o time jogar”. Ele esqueceu que Telê também já foi criticado por gostar de blindar a defesa sem se preocupar muito com o ataque, mas isso passou batido.
No bate-rebate, quem levou a melhor foi o velho “esporte bretão”, que voltou com tudo como a principal metáfora das disputas eleitorais no Brasil. O que é péssimo. À primeira vista, o futebolês parece apenas uma linguagem espontânea, fácil de entender e até mesmo espirituosa. Mas a mania de falar de eleições e de governos como se tudo fosse futebol pode ser deletéria, além de demagógica e desinformativa.
Comecemos por um fato incontestável: os políticos adoram falar de política como se narrassem uma partida. As analogias são incontáveis: “Estamos preparados para entrar em campo”; “Foi um gol de placa”; “Vamos esperar a final do campeonato”; “Será de goleada”. Imaginam que serão mais populares quanto mais versados forem em futebolês. Uns posam de fanáticos, com a intenção de cair nas graças do povo. Outros vestem camisa de um clube e se proclamam “roxos”. Há os que fingem tão completamente que chegam a enganar a si mesmos como torcedores ensandecidos. Querem “entrar com bola e tudo”, depois “partir para o abraço”.
Tudo demagogia, claro. Tirar proveito do gosto popular por qualquer coisa que seja e procurar transferir esse gosto para as urnas não é nada além de demagogia.
O problema, porém, é mais sério. Sabemos que a democracia brasileira muitas vezes segue uma narrativa futebolística. A própria campanha pela volta das eleições diretas, em 1984, teve como grande animador ninguém menos que o maior locutor esportivo da época, Osmar Santos. Autor de expressões consagradas como “ripa na chulipa” e “pimba na gorduchinha”, Osmar foi o mestre de cerimônias nos palanques. Falava para milhões de manifestantes. Tempos gloriosos, aqueles. A paixão pela bola se confundia com a paixão pela liberdade. A Pátria de chuteiras era a Pátria contra a ditadura. Tempos da “democracia corintiana”. Depois de ter sido o motor da alienação dos brasileiros na Copa de 1970 (o tricampeonato foi a consagração do ditador Médici), o futebol se reabilitou em 1984 e foi às ruas pelas Diretas Já.
Aquela foi uma virada positiva, que mudou o país para melhor. A ditadura militar finalmente veio abaixo, as eleições diretas voltaram (a partir de 1989), a ordem democrática se firmou. Mas algo ali mudou para pior. Vem daquele tempo um vício tenebroso dos jogadores: dar entrevistas como se fossem políticos. “Graças a Deus, vamos respeitar o adversário, nossa equipe está tática, física, técnica e psicologicamente preparada, se Deus quiser etc.” Nada mais insuportavelmente vazio e previsível que uma entrevista de jogador. Nada mais falso. Vem da mesma época a banalização total das metáforas futebolísticas para explicar o governo, as eleições e a cara feia da oposição. Nada mais falso, igualmente.
Um governante (ou candidato a estadista) que vive de repetir esses lugares-comuns (“em time que está ganhando não se mexe”; “é uma caixinha de surpresas”; “o jogo não está ganho”) convida o povo a esquecer que, na democracia, as regras valem mais que os gols. O líder que incita seus seguidores a distribuir “caneladas” nos adversários promove, talvez sem se dar conta, a antidemocracia. No futebol, vale tudo o que o juiz não veja. Na democracia, vale mais é aquilo que ajuda o juiz a ver melhor.
A política deveria ser descrita por seus praticantes menos como um campeonato e mais como um processo que se aperfeiçoa no exercício da disputa. Nela, o que conta não deveria ser levar a taça para casa, mas deixar o campeonato ainda melhor. Se querem fazer da política uma atividade tão emocionante como ir ao estádio numa final, as lideranças brasileiras deveriam aprender a torcer pelo juiz. Hoje, quando a polarização eleitoral ganha um clima de Fla-Flu beligerante, não seria ruim dar um cartão amarelo para as cansativas metáforas futebolísticas.
Fonte: Época
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