O presidente Luiz Inácio Lula da Silva continua a trabalhar em seu projeto de poder, o único realmente importante de seus oito anos de mandato. A campanha para eleição de uma presidente-laranja, primeiro exemplar dessa espécie na história do Brasil, deixa claro o sentido pessoal desse projeto.
Se a campanha for vitoriosa, a continuação do trabalho será facilitada. Por enquanto, o próprio Lula comanda a operação. O chamado decreto dos direitos humanos, onde os direitos são postos a serviço do autoritarismo, e o roteiro da 2ª Conferência Nacional de Cultura são os novos lances desse jogo. Reforçam o plano de centralização das principais decisões econômicas. Além disso, alargam o caminho para o controle da informação e da produção cultural, incluída a pesquisa científica e tecnológica.
A política para o pré-sal foi até agora o esforço mais articulado para a centralização do poder econômico. Atentos a questões de segunda ordem, os congressistas gastaram muito tempo discutindo a divisão de royalties. Os pontos politicamente mais importantes são outros.
A criação de uma empresa para administrar o pré-sal poderá facilitar o controle de um setor com renovada importância estratégica. O desenho da nova política deixa em segundo plano a Agência Nacional do Petróleo e atribui à Petrobrás uma função essencialmente operacional. Além disso a converte em ferramenta de política industrial e, portanto, em canal de benefícios para fornecedores, isto é, para segmentos industriais escolhidos para vencer. As vantagens para a economia compensarão os custos dessa política? Esse detalhe talvez seja irrelevante para o projeto de poder.
A maioria dos políticos ficou longe dessas questões até agora. A oposição absteve-se de abrir um debate relevante. Tem permanecido inerte, inepta e acuada, como quase sempre nos últimos sete anos. Não foi capaz de acionar o alarme contra o autoritarismo nem quando o presidente Lula tentou intervir na gestão da Vale e da Embraer. O presidente aproveitou a crise para reforçar seu discurso a favor da concentração de poder. Confundiu questões muito diferentes para defender sua concepção de “Estado forte” – na prática, loteado entre companheiros, inchado, balofo e caro, mas muito útil a um projeto antidemocrático.
Ninguém precisa de um Estado com essas características para disciplinar o mercado financeiro nem para executar políticas anticíclicas. Ao contrário: o Tesouro teria tido reservas financeiras muito maiores para queimar, no combate à recessão, se o governo tivesse conduzido a política fiscal com maior prudência nos anos anteriores. Mas essa prudência não existiu naquele período e não passou a existir em 2009. Um dos problemas para o próximo governo será um orçamento mais comprometido com despesas de custeio e mais inflexível do que tem sido até agora. Isso não é “Estado forte”.
Mas o evidente objetivo do presidente Lula não é fortalecer o Estado, e sim o centro de comando. O poder estatal só se fortalece, num regime aberto, pela consolidação de instituições bem definidas e bem organizadas, com independência entre as funções essenciais (os chamados Poderes da República). São indispensáveis o império da Lei e de normas impessoais de administração. Todas essas condições são incompatíveis com as principais propostas contidas no impropriamente chamado decreto dos direitos humanos e no texto-base da 2ª Conferência Nacional de Cultura, marcada para março.
O assembleísmo, os sistemas de mediação e a “democracia direta” favorecidos por essas propostas são incompatíveis com instituições firmes e eficientes. O poder atribuído a sindicatos e outras organizações formadas em nome de interesses parciais e de correntes de opinião dissolve as instituições e a segurança jurídica. Há uma diferença abissal entre subordinar um projeto de investimento à aprovação de qualquer desses grupos e submetê-lo à avaliação de um órgão público de proteção ambiental. Há a mesma diferença entre um juiz capaz de ordenar o cumprimento da lei e um juiz obrigado a tentar previamente a conciliação entre o criminoso e a vítima. Em casos como esses, uma parcela importante do poder público é privatizada.
Num sistema desse tipo não pode haver Judiciário especializado e independente. Também não há um Legislativo digno desse nome, quando se confere à multidão o poder de veto. Multidão, nesse caso, não é a sociedade, mas um grupo manipulável por um Guia Genial, um Capo ou um Führer. Não é necessário um golpe armado para se construir essa nova ordem.
(“O Estado de SP” – 21/01/2010)
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