Motivado pela mudança de ano e de década, no dia 29 de dezembro escrevi nesta coluna artigo intitulado “Cenários de crescimento, desigualdade e pobreza” que traçava projeções para 2014 dessa trinca de indicadores sociais baseados em renda. A estrutura básica do nosso olhar prospectivo foi projetar no futuro o que aconteceu no período 2003 a 2008 em termos de evolução do crescimento e da redistribuição de renda. A união harmoniosa desses vetores teria como resultante prospectiva a queda da pobreza à metade nos próximos cinco anos.
Esse cenário tão simples quanto determinista denominamos “otimista condicionado”, pois projeta para frente o desempenho excepcional do período pré-crise de 2003 a 2008, ainda visível no espelho retrovisor tupiniquim. No dia 12 de janeiro o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), instituição com longa tradição no cálculo de indicadores sociais, divulgou um “comunicado da presidência” assumindo exatamente a mesma estrutura de projeção por nós proposta, replicando a nossa réplica do que houve no período 2003 a 2008, para também traçar cenários futuros de pobreza. O estudo projeta até 2016 quedas espetaculares de pobreza em sete anos para menos de 1/7 do valor inicial. Já a pobreza extrema cairia a zero, ainda segundo eles. Obviamente, a diferença de opiniões é bem-vinda, como parte intrínseca do ato de imaginar, debater e planejar o futuro. A dúvida, nesse caso, é como ao replicar para frente a mesma trajetória passada chegamos a projeções tão díspares em relação ao futuro. Hipóteses equivalentes aplicadas às mesmas bases já coletadas deveriam, a princípio, levar a resultados similares. A análise de consistência dos cenários futuros de pobreza é o objeto do presente artigo.
Cabe lembrar que a primeira meta do milênio proposta pela ONU é reduzir a pobreza à metade em 25 anos, o que poucos países já a atingiram nos 20 anos transcorridos. No nosso cenário, o Brasil atingiria isso em cinco anos, fato internacionalmente memorável. Há que se notar a diferença de horizontes de projeção entre os dois exercícios de previsão: os cinco anos até 2014, ano da Copa, no nosso caso e sete anos para 2016, ano olímpico, no caso deles. Ao estendermos para sete anos o ritmo do nosso cenário, a pobreza cairia a 61,77% dos valores iniciais. Ou seja, assumimos mais dois anos de invencibilidade do crescimento sustentado forte com redução de desigualdade até 2016. Esse é o número a ser cotejado para compararmos laranjas com laranjas. De qualquer forma, a queda de pobreza de 61,77% reflexo de políticas sociais emergentes e de vento internacional a favor do período é bem menor que os 86,11% e 100% previstos pelo Ipea para as respectivas quedas de pobreza e de pobreza extrema.
Segundo as linhas de pobreza internacionais de um e dois dólares dia, a pobreza caiu respectivamente 43,05% e 47,38% no período 2003 a 2008. Ou seja, a pobreza caiu no cenário de referência mais com a linha mais alta, e não menos. Em todos os casos, a pobreza não cai mais da metade em nenhuma das medidas consideradas na prática no período 2003 a 2008 *.
Se o passado não foi a base para o futuro, qual seria a combinação de crescimento e de redução de desigualdade implícita no cenário futuro de redução de pobreza traçado? Eis a segunda questão. Há na literatura de pobreza um teorema: “se soubermos a média e a distribuição de renda captada pela curva de Lorenz, sabemos necessariamente a medida de pobreza para dados seus demais parâmetros como a linha de pobreza”. O Ipea explicitou redução total de desigualdade medida pelo Gini de 3,1% superior a dos últimos anos. A diferença é mais do que a maior queda anual já observada do Gini. A queda do índice de Gini deles, na verdade, equivaleria a dez e não a sete anos do ritmo inédito de redistribuição de renda assumido entre 2003 a 2008.
A fim de aproximar essa redução turbinada do Gini do estudo deles por uma curva de Lorenz consistente escolhemos a transformação da desigualdade do Brasil na do seu estado mais igualitário: o de Santa Catarina (média de 2001 e 2003). A queda da proporção de pobres consistente com essa equalização de renda e com o crescimento observado entre 2003 e 2008 seria em torno de 65,3%, não diminuindo muito a discrepância dos cenários de redução de pobreza.
Mas qual seria o cenário de crescimento necessário para se chegar a queda de pobreza de 86,1%. Para se chegar lá o bolo de renda brasileiro teria de crescer acumulado 145% em sete anos, cerca de 15% ao ano em termos totais ou 13,6% ao ano em termos per capita. Essa cifra é 158% maior que o crescimento da PNAD entre 2003 e 2008 e 260% a mais que o crescimento do PIB per capita, observados no mesmo período de bonanza pregressa. Em suma, no cenário do comunicado da presidência do Ipea todos os componentes de redução de pobreza estão necessariamente bem acima daqueles observados no excepcional período de 2003 a 2008. Isso não significa que a pobreza não possa cair 86,1% em sete anos mas que para isso seja consistente, a redução de desigualdade teria de ser 39,7% maior que a maior queda observada na nossa história estatisticamente documentada, além disso o crescimento da renda brasileira teria de ser 15% ao ano por sete anos. Por outro lado, dado o cenário de redução de desigualdade proposto, a taxa de crescimento necessária para zerar a pobreza extrema seria literalmente infinita. Na prática, há sempre um núcleo duro de pobreza aonde nem o mercado, nem o Estado, com suas políticas sociais conseguem chegar.
(Valor Econômico – 26/01/2010)
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