Por trás das cenas de puro horror e dor, o Haiti de hoje esconde lições econômicas importantes. A destituição total de um ambiente de vida produtiva gera complicações piores e de natureza distinta da mera destruição de sua infraestrutura.
Existe no Haiti atual uma “economia de destituição” que precisa ser reconhecida e admitida como realidade, para que os entes e poderes lá envolvidos possam colaborar e ajudar de modo mais efetivo.
Após o terremoto em Kobe (Japão) ou o furacão em Nova Orleans (EUA), o drama da população foi imenso, mas não rompeu as cadeias de informação e de comando na sociedade local. No Haiti, contudo, praticamente todos os elos de sustentação de uma frágil sociedade se romperam, inclusive as portas das prisões locais, liberando milhares de malfeitores nas ruas.
Na destituição total, é a população livre que se tranca ou foge enquanto os prisioneiros e gangues dominam a cena. Falta o básico do básico, mas desaparece, sobretudo, o elemento “organização”, que o economista inglês Alfred Marshall já apontava, em 1890, como o fator mais crítico da produção econômica, de uma empresa ou de um país. Lá sobra mão de obra, mas falta a organização das instituições e das informações para a retomada das atividades.
Mas há aspectos da economia da destituição que afetam o âmago da organização, dificultando sobremaneira a tarefa de reconstrução. Após a tragédia, a oferta de bens no Haiti veio abaixo num piscar de olhos.
No entanto, os meios de pagamento continuaram em circulação, provocando, assim, forte desequilíbrio inflacionário, especialmente nos preços da cesta de primeira necessidade. Não há o que comprar, mesmo a altos preços. Por esse motivo, a ponte aérea de suprimentos é tão vital como atender soldados numa frente de batalha.
Outros cortes de consequências diabólicas são os de energia, petróleo e crédito. Uma vez restaurados os primeiros, a sociedade local dependerá do crédito, que depende de confiança, que cessou por completo. A organização de um plano de estímulo via concessão de microcréditos aos pequenos empreendedores restantes seria, possivelmente, a medida de maior impacto prático. Alguns milhões de dólares em restauração do crédito industrial e comercial aos pequenos negócios teriam muito mais valor social do que o mesmo tanto em ajuda meramente assistencial.
Esta, embora não podendo faltar no primeiro momento, torna-se menos premente do que o crédito no segundo. As entidades financeiras locais também precisarão de ajuda através de um mecanismo geral de refinanciamento de seus passivos.
Uma ação conjunta de bancos centrais da região, com destaque para EUA, Canadá, Brasil, México e Chile, poderá oferecer ao país destituído um programa de suporte a bancos locais mediante condicionalidades positivas que fomentem a reorganização dos negócios. E no capítulo dos investimentos, será testada a capacidade de resposta rápida do Banco Interamericano (BID) e do Banco Mundial, não estando afastada a possibilidade de alguma linha específica a ser criada no BNDES.
É urgente ajudar a ultrapassar a barreira da destituição naquele país para iniciar a reconstrução com organização. Essa também é a janela possível para fazer surgir do caos um país com menos vícios e limitações do que o pobre Haiti que conhecemos. Isso dependerá da condução de quem mais lá influi, sendo grandes as responsabilidades dos EUA e do Brasil.
(“Folha de SP” – 27/01/2010)
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